O Brasil passa por um momento atual ímpar em decorrência da mudança do atual sistema tributário nacional, que já tem influenciado as rotinas e estratégias diárias das pessoas físicas e jurídicas. Essa mudança traz uma conexão essencial entre normas e tecnologia, como pilares centrais da reforma tributária.
Após as promulgações da Emenda Constitucional 132/2023 e da Lei Complementar 214/2025, foi institucionalizada a substituição de tributos e inaugura um novo paradigma no direito tributário brasileiro, fundado primordialmente em bases tecnológicas e digitais.
A arrecadação de tributos passa a depender de sistemas operacionais sofisticados e auditáveis, capazes de garantir eficiência, segurança e transparência na cobrança do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
O exemplo desse contexto tecnológico é o split payment (artigos 31 a 35 da LC 214/2025), que se apresenta como pilar do devido processo tecnológico no modelo do Imposto sobre Valor Agregado dual. Sua operacionalização está sendo conduzida pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), responsável pelo desenvolvimento de uma plataforma tecnológica unificada que servirá de núcleo para a arrecadação automatizada do IBS e da CBS.
Segundo a entidade, trata-se de uma infraestrutura baseada em nuvem soberana e arquitetura orientada a eventos, projetada para processar bilhões de transações anuais e integrada ao portal gov.br, garantindo escalabilidade e segurança no tratamento das operações tributárias.
Os estados e municípios deverão adaptar ou desenvolver sistemas próprios compatíveis ao núcleo nacional, de forma a respeitar a autonomia administrativa e, ao mesmo tempo, assegurar a padronização tecnológica exigida reforma.
A Confederação Nacional das Instituições Financeiras também participa ativamente do desenho do modelo do split payment, contribuindo para a integração do sistema aos meios de pagamento (Pix, cartões e boletos), reforçando o caráter colaborativo e gradual da implementação.
A partir de dados divulgados pelo Ministério da Fazenda, constata-se que o novo sistema tributário demandará a integração tecnológica de alto desempenho, capaz de processar inúmeros documentos fiscais por ano e disponibilizar essa base tanto para fornecedores quanto para adquirentes das operações. Essa dimensão evidencia que a reforma tributária vai além da simplificação legislativa, configurando um movimento de profunda digitalização da arrecadação, no qual a tecnologia se consolida como pilar central.
Diante dessa nova realidade, impõe-se a formulação e positivação do devido processo tecnológico — categoria normativa e principiológica que estende as garantias inerentes do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal), para o universo dos sistemas digitais de arrecadação.
Nesse contexto, relacionamos as seguintes proposituras voltadas à consolidação da justiça fiscal digital:
Constitucionalização do devido processo tecnológico: positivar esse modelo como nova dimensão do devido processo legal, em especial no que tange à atuação automatizada do fisco sobre o contribuinte;
Criação de um marco legal tecnológico: compêndio de regras claras sobre segurança, interoperabilidade e responsabilidade digital nos sistemas públicos de arrecadação, objetivando a visibilidade do ferramental à sociedade;
Abertura do Código-Fonte: assegurar que os critérios de tributação automatizada estejam sujeitos a controle público e ao contraditório digital (capacitação do Poder Judiciário em analisar e julgar essas questões); e
Criação de um Comitê Nacional de Governança Tecnológica: responsável pela supervisão da digitalização na arrecadação, composto paritariamente pelo Comitê Gestor do IBS e pela sociedade civil.
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A implementação dessas medidas assegura não apenas a funcionalidade da reforma tributária, mas também a efetividade de suas promessas de simplificação real, justiça fiscal e segurança jurídica. Em tempos de automação crescente, mais do que nunca, o Direito deve acompanhar a técnica — não para submeter-se a ela, mas para civilizá-la por meio de princípios constitucionais e instrumentos normativos adequados.
Dessa forma, o uso da tecnologia no novo sistema tributário — exemplificado pelo split payment — precisa respeitar garantias fundamentais constitucionais, permitindo seus algoritmos e sistemas utilizados sejam auditáveis, transparentes e não discriminatórios. Do contrário, a reforma tributária estará manca, muito embora tecnicamente sofisticada.
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Este texto é fruto das discussões ocorridas no Núcleo do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, na linha de pesquisa “Questões Contemporâneas do Contencioso Tributário”, em relação ao projeto “Reforma do Processo e seus Impactos na Reforma Tributária”