Reforma tributária na saúde: entre promessa de alívio fiscal e risco de complexidade

A reforma tributária sobre o consumo, materializada pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar 214/2025, representa uma das mais ambiciosas reestruturações do sistema tributário brasileiro desde a Constituição de 1988. Para o setor da saúde, os impactos são profundos e multifacetados, exigindo atenção estratégica por parte de hospitais, clínicas, laboratórios e demais prestadores de serviços.

O discurso oficial é de simplificação e racionalização, mas a transição do modelo antigo para o novo não será trivial. A substituição de cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por dois (CBS e IBS), somada à criação do Imposto Seletivo (IS), promete maior transparência e menor litigiosidade, mas o novo modelo traz consigo uma série de desafios operacionais, tecnológicos e jurídicos que podem comprometer a previsibilidade e a eficiência fiscal das empresas do setor.

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De um lado, o segmento foi contemplado com regimes diferenciados que prometem aliviar a carga tributária. A redução de 60% nas alíquotas de IBS e CBS para serviços hospitalares, dispositivos médicos e medicamentos é um avanço relevante, especialmente diante da essencialidade desses bens e serviços. Além disso, há previsão de alíquota zero para entidades imunes, como as certificadas com CEBAS, e para aquisições públicas.

Essas medidas indicam uma tentativa de preservar o acesso à saúde em meio à reestruturação fiscal. Essa diferenciação é positiva, mas não elimina os riscos de aumento de carga tributária, especialmente durante o período de transição (2026–2033), quando os tributos extintos ainda coexistirão com os novos.

Por outro lado, a efetividade desses benefícios dependerá da capacidade das instituições de saúde em atender aos requisitos técnicos e operacionais exigidos pela nova legislação. A correta classificação de serviços segundo a NBS, a regularidade cadastral e a conformidade documental serão determinantes para o aproveitamento das reduções. Pequenas e médias empresas, que já enfrentam limitações estruturais, podem encontrar dificuldades para se adaptar a esse novo cenário.

A complexidade aumenta com a introdução do split payment, mecanismo que automatiza o recolhimento dos tributos no momento do pagamento. Embora essa inovação tenha potencial para reduzir a sonegação e simplificar o cumprimento das obrigações fiscais, ela também traz importante comprometimento no fluxo de caixa das empresas, especialmente em operações parceladas ou com margens reduzidas. A devolução de valores pagos a maior, embora prevista, dependerá de uma integração tecnológica eficiente e de uma gestão fiscal precisa, a qual, mesmo que devidamente atendida, está sujeita a prazos.

Nesse contexto, ferramentas como a Calculadora de Tributos e a Apuração Assistida surgem como aliadas importantes. Elas prometem facilitar a adaptação ao novo modelo, oferecendo funcionalidades como identificação automática de alíquotas, validação de NCM/NBS e simulações online. No entanto, sua eficácia dependerá da capacidade das empresas em investir em tecnologia, capacitar equipes e revisar processos internos — um desafio especialmente relevante para o setor da saúde, que já opera sob forte pressão regulatória e financeira.

A reforma também impacta diretamente as empresas optantes pelo Simples Nacional. A criação de um regime híbrido — que permite recolher IBS e CBS “por fora” do DAS — pode ser vantajosa para empresas B2B[1], que desejam conceder créditos aos seus clientes. Contudo, essa opção implica num aumento enorme da complexidade na apuração de tributos para essas empresas, o que não pode ser ignorado quanto a custos de conformidade.

Veja-se que, até então, empresas do Simples Nacional estavam, efetivamente, submetidas a um regime simplificado e diminuto, com apurações tributárias concentradas. Agora, caso optem pelo chamado “regime híbrido”, tais empresas precisarão fazer uma apuração cumulativa e paralela à do Simples Nacional, pois precisarão apurar IBS e CBS na sua inteireza, sujeitando-se a um regime não-cumulativo que não somente é inteiramente novo no sistema tributário nacional, mas cuja operacionalização de apuração de créditos e débitos era terminantemente alheia a tais empresas, via de regra caracterizadas pelo seu menor porte e por não possuírem um setor fiscal próprio.

Empresas B2C[2], que atendem consumidores finais, tendem a manter-se no regime tradicional, eis que seu relacionamento com outras empresas contribuintes de IBS e CBS se limita a seus fornecedores. Todavia, as B2B, que compram e vendem para outras empresas numa cadeia produtiva ou de prestação de serviços, precisarão avaliar se a permanência no Simples compromete sua atratividade comercial, diante da impossibilidade de gerar créditos para clientes no regime regular.

Como a opção pelo regime híbrido ou regime tradicional deverá ser feita no começo de cada ano-fiscal, de forma irretratável, é inegável que a Reforma Tributária agrega um novo e importante nível de complexidade ao setor da saúde, eis que todas as empresas contribuintes de IBS e CBS precisarão mapear clientes e fornecedores, identificar sua opção pelo regime do Simples Nacional e averiguar seu enquadramento no regime tradicional ou híbrido, para, com isso, determinar as respectivas políticas de formação de preço e compra e de venda.

Outro ponto de atenção é o fim dos benefícios fiscais atualmente vigentes. A reforma estabelece sua extinção até 2032, com redução gradual a partir de 2029. Para o setor da saúde, que historicamente se beneficia de incentivos estaduais e municipais, essa mudança pode representar aumento de custos.

Embora estejam previstos fundos compensatórios — como o Fundo de Compensação de Incentivos Fiscais e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional — sua operacionalização ainda depende de regulamentação complementar e critérios claros de acesso, sendo que certo que não são todas as reduções de base de cálculo, créditos presumidos ou isenções que serão contemplados pelas medidas de compensação trazidas pelo novo regime.

Por fim, a centralização da arrecadação no Comitê Gestor do IBS e a ampliação da competência do STJ para litígios tributários são medidas que visam uniformizar a jurisprudência e reduzir conflitos federativos. No entanto, geram dúvidas sobre a competência para questionamentos administrativos e judiciais, especialmente em temas sensíveis como imunidade, isenção e regimes especiais. A segurança jurídica, portanto, será um fator decisivo para o sucesso da reforma.

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A reforma tributária é uma oportunidade histórica de modernização do sistema fiscal brasileiro. Para o setor da saúde, ela traz promessas de alívio, mas também riscos de complexidade e aumento de custos. A transição exigirá planejamento, investimento e diálogo constante com o Poder Público.

Mais do que nunca, é preciso garantir que a saúde — direito fundamental e serviço essencial — não seja penalizada por um modelo tributário que, embora mais racional, ainda carece de maturidade operacional.

[1] Modelo de negócio business to business ou, na sua tradução para o português, “empresa para empresa”. Neste modelo, o cliente final é uma outra empresa.

[2] Modelo de negócio business to consumer ou “empresa para consumidor”, é um modelo de negócio no qual a venda é diretamente do empreendedor para o consumidor final.

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