PL Antifacção e a institucionalização do desequilíbrio processual

A recente aprovação do PL Antifacção pela Câmara dos Deputados acende um sinal de alerta que ultrapassa as fronteiras da advocacia criminal e atinge o núcleo do Estado democrático de Direito. Embora o combate às organizações criminosas seja uma pauta urgente, necessária e de inegável clamor público, o texto que segue agora para o Senado — sob a relatoria de Alessandro Vieira (MDB-SE) — carrega dispositivos que flertam perigosamente com a supressão de garantias constitucionais e com a erosão da paridade de armas.

O projeto, ao prever o monitoramento de conversas em parlatórios em “casos excepcionais”, ataca frontalmente a inviolabilidade do advogado, garantia pétrea prevista no artigo 133 da Constituição Federal e detalhada no Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94). A história recente do Judiciário brasileiro ensina que a “excepcionalidade”, quando mal delimitada na letra da lei, tende a se tornar a regra na prática forense, normalizando o que a doutrina classifica como Estado policial.

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Ao permitir que o aparato estatal ouça, grave e analise as estratégias defensivas, rompe-se o último fio que sustenta o devido processo legal. O sigilo não é um privilégio corporativo do advogado, mas um direito inalienável do cidadão. É a garantia de que a defesa técnica será exercida de forma plena, sem a sombra de uma espionagem oficial.

Quando a autoridade investigativa ganha acesso aos diálogos entre defensor e constituinte, o contraditório torna-se uma peça de ficção. A defesa entra em campo com sua estratégia previamente conhecida pela acusação, transformando o processo penal em um jogo de cartas marcadas.

Outro ponto nevrálgico do texto aprovado reside nas medidas de constrição patrimonial e intervenção econômica. O projeto estabelece regras duras para o bloqueio de bens e a intervenção judicial na administração de empresas, permitindo o afastamento de sócios e a nomeação de interventores já na fase investigativa. Sob a ótica do Direito Penal Econômico, isso representa um risco severo de “morte civil” da pessoa jurídica antes mesmo de qualquer sentença condenatória.

Vivemos um cenário de espetacularização das operações policiais. De ações midiáticas na Faria Lima a investigações complexas sobre fraudes previdenciárias, a sociedade exige respostas. No entanto, essa legítima sede de justiça não pode justificar a implementação de um sistema de asfixia prévia. Permitir que um juiz determine a intervenção em empresas baseada apenas em indícios de benefício por organização criminosa, sem o trânsito em julgado, pode inviabilizar negócios lícitos que, eventualmente, tenham sido contaminados sem dolo de seus gestores, destruindo empregos e reputações de forma irreversível.

A “briga” processual, termo comum nos corredores forenses para descrever o embate jurídico, pressupõe adversários com forças equivalentes sob a supervisão de um magistrado equidistante. O atual cenário legislativo e judiciário, contudo, tem caminhado na direção oposta. O advogado criminalista, muitas vezes estigmatizado por uma opinião pública que confunde o defensor com o delito, passa a atuar sob a mira de um “Grande Irmão” processual. Teses, dúvidas e orientações legais são captadas e, potencialmente, utilizadas para retroalimentar a acusação, subvertendo a lógica do sistema acusatório.

Há uma falsa percepção social — muitas vezes alimentada pelo populismo penal — de que reduzir direitos de defesa resulta em maior segurança pública. Trata-se de uma cortina de fumaça. A supressão do sigilo advogado-cliente e a facilitação de bloqueios de bens sem o devido processo robusto criam precedentes perigosos. Hoje, essas medidas visam facções; amanhã, a mesma jurisprudência poderá ser utilizada contra qualquer cidadão, empresário ou gestor em litígios tributários ou civis, independentemente da gravidade da acusação.

A advocacia não se opõe à punição de culpados, tampouco ignora a gravidade do crime organizado. Pelo contrário: a advocacia exige que a punição ocorra dentro das quatro linhas da Constituição. O que se critica é a utilização do Direito Penal do Inimigo como ferramenta legislativa, onde o investigado perde sua condição de sujeito de direitos e torna-se mero objeto de eliminação estatal.

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O Senado tem agora o dever republicano de atuar como câmara revisora e filtrar os excessos aprovados pelos deputados. O combate às facções não pode servir de cavalo de Troia para a criminalização do exercício da defesa e para a fragilização da segurança jurídica empresarial.

Sobral Pinto, ícone da classe, já nos lembrava que “a advocacia não é profissão para covardes”. No atual cenário, além da coragem habitual para enfrentar o arbítrio, exige-se dos profissionais do Direito uma vigilância técnica incansável. É preciso deixar claro aos legisladores e à sociedade: um sistema de justiça que precisa violar os direitos da defesa para obter condenações não é eficiente; é apenas autoritário. E o autoritarismo, invariavelmente, cobra um preço alto de toda a sociedade.

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