Em novembro, mês em que o Brasil reafirma sua luta antirracista, torna-se inevitável pensar o direito constitucional a partir de lentes que escapem do suposto universal neutro. Nesse contexto, emerge a perspectiva do constitucionalismo feminista, que é necessariamente antidiscriminatório, seguindo a lição de Adilson Moreira.
Esta abordagem não apenas interpreta a Constituição, mas a revitaliza em chave transformadora e a recompromete com sua raiz – daí porque compromisso radical (fazendo referência à obra seminal de Vera Karam).
A centralidade dessa leitura apoia-se, em grande parte, na obra de Lélia Gonzalez, cuja contribuição intelectual ilumina o modo como raça, gênero e classe se entrecruzam na experiência concreta das mulheres brasileiras. Incorporar Lélia ao debate constitucional não é ato de homenagem: é rigor metodológico e compromisso ético.
O constitucionalismo feminista desloca o eixo tradicional do direito constitucional brasileiro, historicamente marcado por neutralidade aparente, universalidade abstrata e um ponto de vista normativo masculinizado e eurocentrado. Ele exige que a Constituição seja lida a partir da vida real das mulheres e não de um sujeito artificial e genérico; mas a partir de sujeitas situadas, com corpos, histórias e condições sociais que estruturam o acesso, ou melhor, a negação de direitos.
Essa perspectiva não é um recorte específico dentro do direito constitucional; ela é uma reorientação epistemológica que amplia a promessa constitucional de igualdade substantiva, coerente com o projeto constituinte de 1988 e vivificado pelos compromissos internacionais em direitos humanos assumidos pelo nosso país (a dimensão multinível do constitucionalismo feminista já foi objeto desta coluna).
É nesse ponto que Lélia Gonzalez oferece um marco teórico incontornável. Ao elaborar a noção de “racismo por denegação”, evidencia-se como o Brasil sustenta um sistema racista justamente pela negativa constante de sua existência. Esta operação simbólica de negar o racismo enquanto (o direito) reproduz suas hierarquias tem efeitos profundos no campo jurídico, que frequentemente afirma a igualdade formal ao mesmo tempo em que naturaliza desigualdades estruturais.
Fabrica-se, assim, por denegação, um constitucionalismo ficcional pautado num universalismo excludente e parcial, porque se diz neutro, mas cuja neutralidade funciona para manter a centralidade branca e masculina como modelo padrão de humanidade. O constitucionalismo feminista tem que ter como compromisso o tensionamento desta ficção, como fazem Thula Pires e Ana Flauzina.
A neutralidade é um privilégio e a experiência das mulheres negras permanece sistematicamente invisibilizada quando o direito insiste na abstração. Permanecer neutro diante de desigualdades estruturais significa uma omissão inconstitucional e inconvencional pautada pela exclusão. A neutralidade, em vez de corrigir injustiças, as reproduz como se fossem naturais, reforçando hierarquias sob o disfarce da imparcialidade.
Um constitucionalismo verdadeiramente comprometido com o projeto da igualdade não pode ser indiferente; precisa ser ativo, situado e transformador. Portanto, compreender o constitucionalismo implica reconhecer a insuficiência do modelo constitucional tradicional diante de um país estruturado racialmente; portanto, reitera-se: o constitucionalismo feminista é necessária e radicalmente antidiscriminatório.
A desigualdade não é um ponto fora da curva: ela atravessa a política, o mercado de trabalho, o sistema de justiça, a violência institucional, o acesso à educação, à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros. Um constitucionalismo feminista comprometido com a democracia precisa nomear essa estrutura. Precisa assumir que não basta “incluir” mulheres ou racializar debates apenas de modo eventual; é necessário fazer as perguntas certas, como nos provoca Wallace Corbo; transformar modos de interpretar, produzir conhecimento, organizar instituições e tomar decisões políticas. Sem essa inflexão, qualquer discurso de igualdade se reduz a retórica.
A partir dos ensinamentos de Lélia Gonzalez, isso se traduz também numa mudança de lugar de fala e de escuta. O constitucionalismo feminista exige que o direito constitucional se abra a saberes produzidos desde as margens, que reconheça epistemologias negras, indígenas e populares como fontes legítimas de interpretação constitucional. Lélia chamava isso de reconhecer o “pretuguês”, essa mistura viva e potente que constitui o Brasil real e que o discurso jurídico insiste em ignorar. Reconhecimento cuja urgência ecoa, simbolicamente, na histórica eleição de Ana Maria Gonçalves como a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, gesto tardio, mas revelador do necessário deslocamento das fronteiras epistêmicas brasileiras.
No campo constitucional, isso significa repensar quem ensina, quem interpreta, quem decide e quem compõe as instituições. Democratizar o constitucionalismo é, necessariamente, redistribuir poder e repactuar as condições de produção do conhecimento.
Reposicionar a experiência das mulheres negras e de outros grupos historicamente marginalizados não é, portanto, um gesto simbólico ou uma política identitária no sentido pejorativo que o discurso conservador tenta impor. É uma medida de correção democrática: sem pluralizar os sujeitos que interpretam e aplicam a Constituição, o direito permanece refém de uma parcialidade não declarada, mas profundamente operante.
Essa democratização exige igualmente que o sistema de justiça, o ensino jurídico (aqui em especial o alerta de Wallace Corbo, Adilson Moreira e Philippe Oliveira) e os espaços de poder sejam capazes de reconhecer o impacto da colonialidade na formação de suas práticas. Currículos que continuam a reproduzir uma matriz eurocentrada, tribunais cuja composição permanece marcadamente homogênea e epistemologias jurídicas que invalidam conhecimentos produzidos em territórios, periferias e comunidades negras revelam um déficit democrático estrutural.
O constitucionalismo feminista propõe a necessária e radical reconfiguração do próprio espaço constitucional: ampliar a presença de mulheres negras nas universidades, no Ministério Público, no Judiciário (no Supremo Tribunal Federal!), nas carreiras de Estado e nos espaços de decisão normativa não é apenas cumprir uma agenda de diversidade, mas ressignificar o lugar a partir do qual se produz a interpretação autoritativa da Constituição.
Isso altera prioridades institucionais, repertórios hermenêuticos, modos de ver a violência e os direitos, e transforma a própria linguagem constitucional. Democratizar o constitucionalismo, nessa chave, não é incluir sujeitos em estruturas preexistentes, mas reconstruir as próprias estruturas.
O movimento Novembro Negro nos convoca a refletir sobre essas questões. Não como impulso voluntário, mas tarefa de todas e todos que querem ver cumprida a promessa de igualdade, inscrita na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos, que permanece incompleta em um país em que a hierarquia racial organiza desigualdades profundas.
As mulheres negras seguem ocupando posições de maior vulnerabilidade, enfrentando violências múltiplas, invisibilização institucional e uma cidadania frequentemente condicionada. Esse cenário exige um constitucionalismo que não apenas reconheça tais desigualdades, mas que atue para transformá-las.
O compromisso rememorado a cada Novembro Negro não pode se limitar ao calendário simbólico; ele precisa habitar o pensamento individual e coletivo de forma permanente, atravessando os múltiplos espaços em que atuamos, ensinamos, aprendemos ou decidimos. Por isso, um constitucionalismo comprometido com a democracia precisa garantir não apenas presença, mas legitimidade, autoria e permanência, rompendo com as lógicas de apropriação e apagamento que estruturaram, e ainda estruturam, nossas instituições.
Lélia Gonzalez nos ensinou que não há democracia possível sem o enfrentamento simultâneo do racismo, do patriarcado e da colonialidade. O constitucionalismo – necessariamente feminista e antirracista – precisa incorporar essa lição com radicalidade para que ele possa enfrentar a violência política de gênero e raça como problema constitucional; que compreenda o cuidado como fundamento democrático e política pública; que combata o epistemicídio; que sustente políticas afirmativas robustas; que denuncie a seletividade penal e a violência estatal; que amplie e proteja espaços de representação; e que reenquadre a própria ideia de cidadania, incorporando sujeitas e experiências historicamente excluídos.
Ao afirmar que a igualdade não é apenas norma, mas tarefa histórica, reconhece-se que a democracia está sempre por fazer — e que sua construção passa necessariamente pela ampliação das vozes, projetos e pessoas que compõem e constroem o espaço constitucional. Se o constitucionalismo brasileiro deseja projetar um futuro democrático, o compromisso feminista e antirracista não é complemento; é condição.
O constitucionalismo feminista, necessária e radicalmente antidiscriminatório, quando plenamente assumido, torna-se bússola para esse caminho, alertando que igualdade, justiça e democracia não se realizam no silêncio das estruturas, mas na coragem de transformá-las.