Reforma tributária: quando o ideal de justiça fiscal encontra a realidade política

A reforma tributária sobre o consumo, que foi aprovada pela Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023, e regulamentada pela Lei Complementar 214, de 16 de janeiro de 2025, prometia simplicidade e justiça, mas o resultado final ficou aquém do sistema tributário ideal.

À época, o discurso era unificar tributos com base ampla, não cumulatividade plena e alíquota uniforme. O texto aprovado, porém, acabou repleto de exceções e peculiaridades: a base de incidência não ficou tão ampla, a não cumulatividade não será tão plena e a alíquota, muito menos única a tudo e a todos.

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A reforma ideal deu lugar à reforma possível. Por quê? Do nosso ponto de vista, a resposta passa pelo conflito entre dois modos antagônicos de ver a legislação tributária: de um lado, a ciência do direito tributário, guiada por princípios e pela ideia de coerência; de outro, a política, movida pela conquista do poder e por acordos com grupos de interesse.

Não há dúvida que a relação entre a ciência do direito tributário e a política não é harmoniosa. Essa falta de sintonia entre uma e outra pode ser ilustrada pela forma como os políticos geralmente lidam com os projetos dos juristas. Antes da promulgação da Emenda Constitucional 132, outros projetos de reforma tributária do consumo já haviam sido apresentados e depois esquecidos ou abandonados pelo Congresso Nacional.

Em 2013, o jurista alemão Klaus Tipke publicou um artigo que abordou as razões pelas quais a ciência do direito tributário e a política não se harmonizariam entre si. Embora trate da realidade alemã, o diagnóstico de Tipke serve para compreender por que a reforma tributária do consumo no Brasil resultou em um modelo incompleto, contraditório e muitas vezes dependente de regulamentação futura. Seus argumentos ajudam a iluminar o choque entre o ideal dos juristas e o pragmatismo da política.

O ideal dos juristas: justiça, coerência e sistema

Os juristas têm a tendência de enxergar a legislação tributária sob a ótica da justiça fiscal. Um bom sistema tributário é aquele que repartiria a carga fiscal, por razões de justiça distributiva, conforme a capacidade econômica de cada contribuinte (Tipke, 2013). Essa distribuição deveria ser coerente e livre de contradições para promover a imparcialidade e a consistência da legislação tributária com a aplicação dos mesmos critérios a todos os contribuintes e a todos os tributos.

Coerência implica também rejeitar privilégios fiscais sem uma justificativa racional. Na visão da ciência do direito tributário, benefícios ou incentivos fiscais seriam legítimos apenas e tão somente quando estivessem a serviço do interesse geral; caso contrário, configurariam privilégios fiscais que violam o princípio da igualdade. Por trás dos privilégios fiscais, sempre estariam grupos de interesse e desejos eleitorais, muitas vezes atendidos antes das eleições (Tipke, 2013).

Outro elemento do ideal científico do direito tributário é a estabilidade e coerência da legislação no tempo. Leis tributárias alteradas a todo momento dificilmente promoveriam a justiça entendida como capacidade contributiva. Cada mudança abriria brechas, criaria tratamentos casuísticos e prejudicaria a consistência do sistema. Para os juristas, a justiça deveria ser permanente: não há equidade fiscal com reformas frenéticas ou remendos frequentes na legislação (Tipke, 2013).

Em um Estado de Direito, a maioria política não poderia tudo. Sob a perspectiva jurídica, uma lei tributária não seria justa apenas porque foi aprovada pela maioria. A maioria está diretamente vinculada aos direitos fundamentais, que têm eficácia imediata (Tipke, 2013). A lei se submete à justiça, não a justiça se submete à lei.

Por fim, a ciência do direito tributário preconizaria uma legislação conforme a ideia de sistema. As normas tributárias deveriam ser gerais e abstratas. Além disso, deveriam utilizar conceitos técnicos. Com regras e princípios claros, pouca margem para exceções e nenhum “jeitinho” setorial, a legislação tributária, de forma duradoura, promoveria o ideal da justiça fiscal (Tipke, 2013).

A lógica da política: poder, interesses e flexibilidade

Do outro lado, está a realidade política da elaboração das leis tributárias. Políticos operam sob a necessidade permanente de obter e manter apoio popular e parlamentar. Por isso, seria ingênuo esperar ou exigir que os políticos não se preocupassem com o impacto das leis tributárias sobre os eleitores, principalmente sobre os grupos de interesses. Considerações de poder e viabilidade eleitoral influenciariam cada uma das suas decisões.

Uma reforma tributária, por mais técnica que seja, passa pelo filtro do cálculo político. Quais setores seriam afetados? Quem ganharia e quem perderia? Haveria custo eleitoral? Não é de surpreender que os legisladores cedam a pressões de grupos organizados e negociem exceções para acomodar diferentes interesses (Tipke, 2013).

Na lógica política, vigora o primado da política sobre a justiça. A busca de apoio falaria mais alto. Em uma democracia parlamentar, os políticos entendem que a maioria decidiria o que é justo. Essa mentalidade relativiza questionamentos técnicos ou éticos: se há acordo político suficiente, então é presumida a validade do resultado.

Para os políticos, os direitos fundamentais seriam meras frases ou recomendações não vinculantes para o legislador. O processo legislativo garantiria sem necessidade de maiores reflexões ou dúvidas que qualquer lei tributária aprovada pelo Parlamento realizaria os direitos fundamentais (Tipke, 2013).

Outro traço do agir político é o casuísmo legislativo. Em vez de normas gerais e abstratas, a pressão por resolução de problemas pontuais geraria múltiplas exceções e tratamentos diferenciados. O resultado é um emaranhado de normas tributárias complexas e permanentes alterações para atender às demandas do momento. Cada novo governo tenderia a ajustar os tributos conforme suas promessas de campanha ou pressões do eleitorado, com a quebra da continuidade (Tipke, 2013).

Por fim, a cooperação estreita com os lobistas é parte do processo político em que está situada a legislação tributária. Grupos de interesse atuariam para incluir vantagens para si nas leis. Políticos, muitas vezes, atenderiam essas pautas em troca de apoio ou financiamento (Tipke, 2013).

A reforma possível: compromissos e contradições

A tensão entre o ideal científico e o pragmatismo político veio à tona na reforma tributária do consumo. Os juristas desenhavam há anos propostas de IVA moderno, simples e justo, mas a sua aprovação exigiu que passasse antes pelo triturador político. O texto promulgado foi produto de concessões recíprocas, não de uma adesão pura e simples aos princípios da justiça tributária.

Setores obtiveram exceções na base tributária, regimes especiais e alíquotas diferenciadas. Cada um dos desvios do modelo ideal ocorreu para viabilizar politicamente a aprovação.

O resultado é uma legislação tributária incompleta, contraditória em vários pontos e altamente dependente de regulamentação futura. Muitos dispositivos remetem a outras leis (ordinárias e complementares) que precisarão ser editadas. Sob a lente da ciência do direito tributário, falta coerência para o novo modelo.

Mais grave é que a reforma não apenas ficou aquém do ideal, mas também flertou com a inconstitucionalidade. Há certos arranjos aprovados que violam cláusulas pétreas, como a forma federativa do Estado e os direitos, liberdades e garantias individuais.

O STF e o primado do Direito: um contrapeso necessário

Diante desse quadro, quem pode harmonizar a justiça fiscal com a realidade política? No Brasil, a esperança recai sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). Como guardião da Constituição, o STF tem o poder de corrigir as distorções da reforma tributária, por afrontarem afrontem direitos fundamentais ou princípios constitucionais.

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A Constituição prevalece sobre a lei (ordinária ou complementar): o legislador deve obedecer à Constituição, não o contrário. O princípio do Estado de Direito implica a primazia do Direito: ao fim e ao cabo, é o rule of law quem conforma o poder político (Tipke, 2013).

A reforma tributária do consumo, conquistada a duras penas no campo político, terá um longo percurso de ajustes e desafios. No embate entre o ideal e o possível, prevaleceu inicialmente o possível. Mas a história não termina na sua promulgação: a justiça fiscal continua em jogo. Falta aguardar se o STF conseguirá aproximar o novo sistema tributário do consumo com o ideais de justiça, de coerência e de sistema defendidos pelos juristas.

TIPKE, Klaus. Warum Steuerrechtswissenschaft und Steuerpolitik nicht harmonieren. Steuer und Wirtschaft. Steuer und Wirtschaft, 2013, Heft 2, p. 97–106.

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