Reforma administrativa reacende debate sobre gestão de desempenho

A gestão de desempenho ocupa espaço de destaque nas discussões sobre o serviço público. No nível federal, o cenário, hoje, é fragmentado: marcado por modelos múltiplos, sobrepostos e pouco integrados, com diferentes regras para estágio probatório, gratificações e progressões, baseadas em sistemas específicos. É o que conclui o Anuário de Gestão de Pessoas de 2025 da Republica.org, divulgado em outubro. Em quase metade (48%) dos estados e na maioria (62%) das capitais não há regulamentação da avaliação de desempenho para toda a administração pública, segundo o estudo.

A reforma administrativa em tramitação na Câmara tenta reorganizar esse quadro ao prever instrumentos de planejamento estratégico, avaliação periódica e acordos anuais de resultados. Se aprovada, a proposta poderá tornar obrigatórios parâmetros de avaliação em toda a administração pública. Para especialistas, a proposta abre espaço para modernização, mas exigirá forte capacidade de implementação e coordenação. Já representantes de servidores temem que o texto abra margem para uso punitivo das avaliações, receio alimentado pela ausência histórica de regras claras.

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A Constituição prevê desde 1998 a avaliação periódica de desempenho como mecanismo para aferir eficiência e, em última instância, fundamento para perda do cargo. Mas, passados quase 30 anos, nunca foi editada a lei complementar exigida para detalhar esse processo.

Para Cibele Franzese, professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  e integrante do Movimento Pessoas à Frente, essa lacuna cria insegurança jurídica, desconfiança entre os servidores e impede a maturidade do debate. Ela explica que, sem regras claras, qualquer discussão sobre desempenho é automaticamente associada ao risco de demissão, ainda que, na realidade, exemplos de desligamentos por desempenho sejam raros mesmo em países com sistemas maduros. 

“A avaliação de desempenho é só um pedaço da gestão do desempenho. A avaliação, em alguns casos, pode levar à demissão, mas tem um universo enorme para a gente discutir, que é muito mais interessante e importante em termos de desempenho, do que a possibilidade de demissão”, afirma. 

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O presidente do Sindilegis e do Instituto Servir Brasil, Alison Souza, considera que a avaliação de desempenho em si não é questionada pelos servidores. Segundo ele, principalmente no nível federal, os servidores já estão familiarizados com a aferição de desempenho individual. Para o presidente das organizações, o gargalo está na falta de indicadores institucionais que permitam medir se políticas e programas funcionam.

“O que tem que melhorar é a avaliação de desempenho institucional”, avalia. “O prefeito assume e quais são os planos dele para a educação e para a saúde? Quais são os indicadores nos quais ele vai se basear para aferir o resultado da gestão dele? Em grande parte das funções de governo, seja de uma prefeitura ou de um governo de estado ou ministro da União, há uma carência enorme de indicadores”, considera.

“Quem determina o funcionamento do serviço é o agente político. O problema central não é o servidor. É o uso político do Estado, o desvio de prioridades e a falta de planejamento”, afirma. 

Para Alison, a proposta de reforma administrativa na Câmara acerta ao exigir planos de governo. A PEC 38/25 estabelece que, em até 180 dias depois da posse, governadores e prefeitos deverão divulgar o planejamento estratégico para resultados, com objetivos e metas para todo o mandato, que deve orientar os acordos de resultados, com metas e objetivos para cada ano. A proposta, porém, peca por não definir, em detalhe, como isso será monitorados. “Escrever na Constituição não basta. Falta pragmatismo: onde isso será publicado? Quem fiscaliza? Quais as consequências para quem não cumpre?”, questiona. 

Por outro lado, o servidor reconhece que há uma desconfiança no funcionalismo público quanto aos possíveis impactos de uma avaliação de desempenho para a estabilidade de servidores pela falta de “regras claras” sobre como os resultados poderão ser usados em processos de demissão. “Os servidores não são contra avaliação de desempenho. O que gera receio é a indefinição sobre o processo e as garantias”, diz.

O temor atual é uma herança da proposta de reforma administrativa enviada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2020, a PEC 32. Para os servidores contrários à proposição, o texto não era claro e abria brechas para um mecanismo de “demissão sumária”. Alison avalia que a PEC 38 não repete os mesmos erros do projeto anterior, mas mantém a desconfiança por não trazer definições claras sobre como se daria esse processo de demissão e o acesso do servidor à ampla defesa. A proposta não enfrenta o problema já que ainda não regulamenta o trecho da Constituição que trata do desligamento por insuficiência de desempenho. Para o especialista, a resistência só será superada com um debate técnico mais amplo no Congresso que explicite etapas, prazos e garantias. “Não dá para aprovar no escuro”, defende.

O desafio da implementação

A adoção de regras nacionais para gestão de desempenho esbarra em um obstáculo estrutural: a desigualdade de capacidades administrativas entre os mais de 5 mil municípios brasileiros. A proposta de reforma administrativa busca solucionar parte da questão por meio de uma PEC com diretrizes gerais. Mas especialistas alertam que esse movimento pode esbarrar em parâmetros inaplicáveis para a maioria dos entes federativos. “Você pode criar normas muito bonitas que nunca vai conseguir implementar”, alerta a professora de Direito Administrativo da FGV SP Vera Monteiro. Há o risco de que as normas não tenham adesão por falta de interesse, recursos ou capacidade técnica de estados e municípios.

Apesar das preocupações, a proposta de reforma também apresenta avanços e representa uma evolução do debate. “Colocar na lei é só o começo. É preciso gestão no dia a dia, planejamento estratégico, cultura organizacional”, afirma Cibele Franzese, do Movimento Pessoas à Frente.

Ela destaca entre os pontos positivos o alinhamento entre metas institucionais e metas individuais de desempenho, a vinculação da progressão funcional aos resultados, a pré-seleção de dirigentes com base em competências, a criação de um banco de informações e a construção de um sistema de gestão que ultrapassa a lógica da avaliação punitiva.

Caminhos possíveis

Hoje, a gestão de desempenho no governo federal funciona, majoritariamente, com um emaranhado de regras e sistemas que não conversam entre si, conforme anuário da Republica.org. O estágio probatório, por exemplo, segue a Lei 8.112/1990 e o Decreto 12.374/2025; as gratificações dependem de um conjunto variado de normas, como o Decreto 7.133/2010, além de regulamentos próprios de cada carreira; e progressões e promoções obedecem às leis específicas de cada categoria.

Na prática, isso obriga as áreas de recursos humanos a tocar avaliações de servidores de suas carreiras e, ao mesmo tempo, administrar processos de profissionais cedidos ou vinculados a outros órgãos, tudo isso espalhado em sistemas distintos, com lógicas, prazos e bases de informação diferentes.

“Essa multiplicidade normativa em conjunto com critérios exclusivamente comportamentais (mais subjetivos, portanto) e o vínculo direto com benefícios pecuniários tende a gerar avaliações pouco fidedignas, marcadas pela atribuição generalizada de notas máximas. Como consequência, o instrumento deixa de cumprir sua finalidade de diferenciar desempenhos, reconhecer excelência e orientar ações de desenvolvimento”, afirma o estudo. 

Nesse cenário, o Programa de Gestão e Desempenho (PGD), coordenado pelo Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), tem se consolidado como uma avanço, avaliam especialistas. Criado para substituir o controle de presença por uma lógica orientada a resultados, o PGD estrutura o trabalho em dois instrumentos: o plano de entregas da unidade e o plano individual. Hoje, adotado por 189 órgãos, o programa é apontado pelo governo como um marco na mudança de cultura administrativa, com mais clareza sobre prioridades, ganhos de produtividade e fortalecimento da autonomia com responsabilidade.

Segundo Guilherme Coelho, diretor da Republica.org, a própria criação do MGI pelo governo federal representa um “passo importante” para colocar a gestão de pessoas no centro da discussão do Estado.

Para especialistas, o PGD exemplifica um caminho viável para modernizar a avaliação no setor público sem transformá-la em instrumento de punição. O diretor da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp), Paulo Kliass, considera que o programa mostra que é possível avançar sem representar algum tipo de ameaça à estabilidade do servidor. 

Entre os caminhos possíveis para aperfeiçoar a avaliação, especialistas apontam que a estratégia mais eficiente seria começar pela União. Para Vera Monteiro, o governo federal poderia consolidar um sistema robusto com base na experiência do PGD, aprovar legislação infraconstitucional detalhada e estabelecer boas práticas replicáveis por Estados e municípios. 

O PGD é um ponto de partida, mas uma solução final passa pela ligação entre metas individuais e metas institucionais, elemento considerado essencial por especialistas para que a gestão de desempenho produza impacto percebido pela sociedade. “O cidadão quer saber como a ação do servidor melhora o resultado do órgão”, alerta Cibele Franzese. Sem esse vínculo, as avaliações correm o risco de virar um checklist burocrático.

Outro problema é a ausência de uma política estruturada para dirigentes públicos. Países da OCDE possuem programas específicos para seleção, acompanhamento e desenvolvimento de lideranças. No Brasil, esse tema ainda é incipiente, o que limita a efetividade de qualquer sistema de desempenho. “São os dirigentes que transformam metas institucionais em metas de equipe. Sem preparação adequada, a gestão não funciona”, diz Franzese.

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