A Medida Provisória 1.304/2025 não tratava originariamente dos royalties do petróleo, mas de uma série de outros temas relacionados à energia. Porém, uma emenda à MP foi introduzida durante a sua tramitação pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM), sem fundamentação ou discussão prévia com o setor, e ela alterou profundamente a forma de cálculo desses royalties.
Neste momento, o texto, aprovado como PLV 10/2025, encontra-se na Presidência da República para sanção ou veto.
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Neste texto, apontaremos inconstitucionalidades e incongruências na mudança que justificariam o veto presidencial, seja por inconstitucionalidade, seja por contrariedade ao interesse público. Os pontos estão alinhados com preocupações externadas pelo Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP), que reúne os agentes econômicos do setor, bem como pela ANP – agência regulatória com competência legal e expertise na área –, que se manifestou afirmando que as mudanças pretendidas no cálculo dos royalties “podem criar graves riscos regulatórios, jurídicos e operacionais”.[1]
Os royalties, como se sabe, são participações governamentais pagas por empresas que produzem petróleo e gás natural, que, pela Constituição, constituem monopólios federais. Os royalties configuram receita pública originária, de natureza não tributária, e os recursos arrecadados são partilhados pelos entes federativos – União, estados, Distrito Federal e municípios –, nos termos do art. 20, § 1º, da Constituição, com base em critérios definidos pelo legislador.
Atualmente, os royalties são calculados mensalmente pela ANP, com base na produção do petróleo e do gás natural, consideradas as características físico-químicas do óleo e do gás extraídos de cada corrente.
A ANP define os preços de referência desses hidrocarbonetos, a partir de critérios previstos na Lei 9.557/1997, no Decreto 2.705/1998 e em resoluções da própria agência. Esses valores buscam captar os resultados da produção do petróleo e do gás, não abarcando as fases subsequentes do ciclo econômico dessas commodities, como o seu transporte, como se infere das definições contidas na Lei 9.557/1997 (art. 6º, XVI e 47, caput, da Lei 9.478/1997).
Sobre essa base de cálculo, incide a alíquota de 10% no regime de concessão de petróleo e gás natural (art. 47, Lei 9.557/1997), e de 15% no regime de partilha (art. 42, § 1º, Lei 12.351/2010).
O art. 15 do PLV 10/2025 alterou essa forma de cálculo. Na nova metodologia, o preço do petróleo ou gás natural, utilizado para calcular os royalties, será primeiramente baseado na “média das cotações divulgadas por agências de informação de preços reconhecidas internacionalmente que reportem preços finais de transações entre partes independentes”.
Caso essa informação não esteja disponível, adota-se “a metodologia prevista na Lei 14.596”, que cuida dos preços de transferência relativos ao Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Apenas na impossibilidade de emprego também do preço de transferência, é mantido o modelo vigente, baseado nos preços de referência calculados pela ANP.
Essa mudança, porém, gera diversos problemas jurídicos e práticos. Ela é conceitualmente equivocada, por embaralhar institutos que servem a finalidades diversas e incompatíveis, criando com isso uma série de problemas para as empresas e para o Estado.
Ademais, a alteração atinge gravemente a segurança jurídica, inclusive por repercutir sobre contratos de concessão e partilha celebrados anteriormente. Para fins didáticos, dividiremos o restante deste artigo em duas partes, que abordarão cada um desses aspectos da questão.
Mudança embaralha institutos incompatíveis e viola princípio constitucional da razoabilidade
Como visto, o PLV 10/2025 prevê, como primeiro método para cálculo dos royalties, o recurso à “média das cotações” divulgadas por agências reconhecidas internacionalmente. Contudo, na prática, será inviável o uso deste método, pois não há agência de informação de preços internacionalmente reconhecida que divulgue os preços da grande maioria das correntes de petróleo existentes no país.
Recorde-se que os preços têm de ser definidos por correntes, porque é comum a existência de diferenças físico-químicas no óleo e gás extraídos de cada corrente, o que têm impacto relevante no respectivo preço de mercado.
Ademais, a alusão a “preços finais de transações”, contida no PLV 10/2025, parece indicar o cômputo na base de cálculo dos royalties de elementos estranhos à produção do óleo e gás, como custos de transporte, seguro, gastos portuários, entre outros elementos. Nos termos da legislação em vigor – que não foram alterados pelo PLV 10/2025 – os royalties incidem sobre a produção, e esta não envolve custos incorridos posteriormente no ciclo do petróleo e do gás natural.
O segundo método previsto – o recurso aos preços de transferência – afigura-se igualmente problemático. Os preços de transferência constituem instrumento típico do Direito Tributário Internacional, voltado à “determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizem transações controladas com partes relacionadas no exterior” (art. 1º, parágrafo único da Lei 14.596/2023).
Quando partes relacionadas (como controlador e controlada, empresas coligadas etc.) transacionam, o valor formalmente ajustado entre elas pode não corresponder ao praticado no mercado, que seria utilizado por parceiros comerciais independentes. Os preços registrados podem ser manipulados, de modo a transferir artificialmente lucros para jurisdições com menor carga tributária.
A disciplina dos preços de transferência nasce da necessidade de corrigir distorções dessa natureza, de modo a evitar a erosão das bases tributáveis e aproximar o resultado fiscal da renda efetivamente auferida pela empresa. Para atingir esse objetivo, aplica-se o princípio arm’s length, que busca apurar os termos que seriam estabelecidos por partes não relacionadas em transações comparáveis, tomando-os como base para a tributação.
A legislação prevê diversas metodologias para o cálculo do preço de transferência, como o Preço Independente Comparável (PIC), o Preço de Revenda menos Lucro (PRL), o Custo mais Lucro (MCL), a Margem Líquida da Transação (MLT) ou a Divisão do Lucro (MDL). Elas podem partir da mera comparação do preço de operações comparáveis, quando essa informação estiver disponível; podem recorrer a cálculos baseados nas margens brutas, subtraindo o lucro do preço de revenda ou somando-o ao custo; podem ainda se valer de margens líquidas nas operações, entre outros parâmetros.
Diante do seu objetivo, é bastante amplo o escopo de apuração no sistema de preços de transferência. As metodologias empregadas “devem procurar capturar adequadamente o modelo de negócio e a cadeia de valor de determinado grupo econômico”, examinando a criação de valor “não apenas a partir dos fatores de produção (v.g., capital e trabalho), mas com a devida consideração a todos os elementos que contribuem para a geração da renda”.[2]
Como instituto relacionado a tributos federais, o preço de transferência sujeita-se à regulação e fiscalização da Receita Federal. Nos termos da legislação, ele é objeto de apuração anual.
Assim, é possível compreender as profundas diferenças entre os royalties e o preço de transferência, que geram verdadeira incompatibilidade entre os institutos. Os preços de transferência consistem em instrumentos fiscais para mensuração de lucros tributáveis; os royalties são compensações não tributárias pela exploração de um monopólio público.
Nos preços de transferência, busca-se corrigir um expediente do contribuinte voltado à redução artificial do pagamento de tributos no país; nos royalties, não está em jogo qualquer mecanismo que empresas pudessem empregar para pagar menos ao Estado.
Nos preços de transferência há uma avaliação econômica ampla da operação comercial; já os royalties se baseiam apenas na aferição objetiva da produção de petróleo e gás, e respectivas características físico-químicas. Os preços de transferência têm apuração anual; nos royalties, ela é mensal. Os preços de transferência se submetem à normatização e à fiscalização da Receita Federal, detentora de expertise e competência legal na matéria; os royalties se sujeitam à ANP.
Mas não é só. Os mecanismos envolvidos no cálculo dos preços de transferência são bastante complexos. Eles demandariam expressivos custos adicionais para as empresas de óleo e gás, de natureza burocrática e ligados ao compliance, já que os cálculos dos preços de transferência são feitos individualmente, para cada pessoa jurídica, e não pela ANP, como ocorre atualmente no cálculo dos royalties.
Ademais, essa nova mecânica ensejaria custos e complexidades adicionais de fiscalização para o próprio Estado. Até porque, ela criaria um verdadeiro dilema institucional: ou se exige que a ANP, uma agência reguladora setorial, implemente e fiscalize uma complexa metodologia tributária para a qual não detém especialização técnica, ou se impõe à Receita Federal, um órgão de administração fiscal, o exercício de funções de regulação e fiscalização sobre uma receita de natureza patrimonial e não tributária, na área altamente técnica e complexa de óleo e gás, o que excede a sua esfera de atribuições legais e refoge à sua expertise.
Este arranjo híbrido seria certamente fonte de disfunções administrativas, abrindo margem para eventual sobreposição de normatizações e fiscalizações, divergência de critérios interpretativos entre os órgãos, multiplicação exponencial de litígios e um aumento substancial e injustificado dos custos burocráticos e de conformidade para as empresas do setor.
Além disso, pela definição legal vigente – que não foi alterada pelo PLV 10/2025 –, os royalties só incidem sobre o preço do petróleo e do gás natural na produção, não devendo abarcar, portanto, os valores correspondentes aos custos de fatores que ocorrem em fases subsequentes no ciclo econômico dessas commodities, como transporte, logística e elementos semelhantes.
Na metodologia dos preços de transferência, porém, essas variáveis poderiam ser computadas, pois o que se objetiva é verificar o valor que teria uma venda internacional de petróleo entre contratantes não vinculados (princípio arm’s length), e, no preço dessa transação, seria possível a incorporação de custos envolvidos no negócio, como o transporte, frete, seguro, gastos portuários etc.
Todas essas diferenças evidenciam que ofende o princípio da razoabilidade o emprego das novas metodologias para cálculo dos royalties, com alteração de um sistema que vem funcionando bem.
O princípio da razoabilidade, amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência brasileiras, demanda, entre outras exigências, que haja congruência entre as normas e a “natureza das coisas” sobre as quais elas incidem. Medidas em descompasso com a realidade ofendem essa faceta da razoabilidade, assim como normas jurídicas que se afastem da lógica inerente aos institutos que disciplinam. Como aponta Humberto Ávila, a razoabilidade envolve “um dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas (Natur der Sache)”, do qual a atuação estatal não pode se afastar.[3]
Essa faceta da razoabilidade tem sido acolhida em diversas decisões do STF. Assim, por exemplo, o julgado que invalidou a concessão de adicional de férias para servidores aposentados, pelo fato de que funcionários inativos não gozam de férias;[4] a decisão que impediu o pagamento de auxílio-moradia para membros do Ministério Público na inatividade,[5] já que tal vantagem se destina a indenizar os que trabalham em local diferente daquele em que possuem residência própria, o que não se aplica aos que já se jubilaram; e o julgado que invalidou lei que concedera pensão vitalícia às crianças geradas em razão de estupro, sem levar em conta qualquer critério de necessidade dos beneficiários.[6] Em todos esses casos, observou-se uma incongruência entre a realidade e a norma editada para regulá-la.
No caso em debate, o mesmo fenômeno se observa, já que métodos inviáveis, que envolvem elementos completamente estranhos à produção do petróleo e do gás natural, seriam empregados para cálculo dos royalties, gerando, com isso, grande confusão, aumento de custos burocráticos e de conformidade, enormes dificuldades de operacionalização e fiscalização pelo Estado, riscos de judicialização, além de insegurança jurídica para as empresas e para todos os entes federativos que se beneficiam dessa receita pública.
Por isso, entendemos que é inconstitucional a mudança no cálculo dos royalties prevista no PLV 10/2015, já que incompatível com o princípio constitucional da razoabilidade.
Aplicação do PLV 10/2025 a contratos já celebrados viola a Constituição
No Brasil, é pacífico que a proteção constitucional ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI) veda não apenas a incidência de novas normas sobre o passado, como também a sua aplicação sobre efeitos futuros de negócios jurídicos celebrados no passado.
Como vem destacando a pacificada jurisprudência do STF, “os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Os contratos – que se qualificam como atos jurídicos perfeitos – acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República”.[7]
Afinal, um dos principais corolários da segurança jurídica é a calculabilidade. Se os efeitos futuros dos contratos não fossem calculáveis, inexistiria segurança para conduzir negócios e fazer investimentos. Sem essa segurança, prejudica-se o desenvolvimento nacional, alçado à objetivo fundamental da República brasileira pelo art. 3º, inciso II, da Constituição de 1988.
Tais considerações são importantes, considerando que os royalties se integram profundamente à matriz econômica do contrato de concessão ou partilha. Como salientado anteriormente, os royalties não possuem natureza jurídica tributária, não sendo pertinente à hipótese, portanto, o argumento de que não se pode invocar o direito adquirido e o ato jurídico perfeito para impedir a cobrança de tributos sobre fatos geradores futuros.
Ademais, a aplicação da mudança a contratos anteriores violaria também a proteção constitucional à confiança legítima das empresas que, de boa-fé, fiando-se no respeito ao que fora pactuado com a União – que incluía a fórmula de cálculo dos royalties – participaram de licitações, pagaram elevados bônus de subscrição e assumiram os diversos riscos geológicos, operacionais e econômicos inerentes à exploração e produção de petróleo e gás natural.
Nesse cenário, uma mudança tão significativa e repentina na fórmula de cálculo dos royalties incidindo sobre contratos anteriores ofenderia a proteção constitucional da confiança legítima.
Como se sabe, a confiança é elemento especialmente importante quando estão em jogo iniciativas econômicas e investimentos tão vultosos como aqueles envolvidos na exploração e produção de petróleo e gás natural. Protegê-la em relação a investidores e agentes econômicos privados foi, inclusive, uma das grandes promessas feitas pelo constituinte derivado, por ocasião da flexibilização do monopólio de petróleo, promovida pela Emenda 9/1995.
Sem a garantia de respeito aos contratos e às regras do jogo, o objetivo de desenvolvimento econômico subjacente à opção constitucional de abertura desse campo econômico à iniciativa privada tende a se frustrar.
Por fim, a mudança alteraria a matriz econômica das concessões e das partilhas celebradas, desnaturando o equilíbrio econômico-financeiro desses contratos administrativos, que é assegurado pela Constituição (art. 37, inciso XXI). Como já assentou o plenário do STF, “a estabilidade econômico-financeira do contrato administrativo é expressão jurídica do princípio da segurança jurídica, pelo qual se busca conferir estabilidade àquele ajuste”.[8]
Na hipótese em discussão, a alteração da equação econômico-financeira original, com a mudança radical da metodologia de cálculo dos royalties, não teria como ser recomposta pela União. Por um lado, não seria possível a recomposição pelo reajuste dos preços do petróleo e do gás natural, como se dá com as tarifas nos serviços públicos, já que tais preços decorrem do mercado, não sendo estabelecidos pelo Estado.
Por outro lado, tampouco seria possível reequilibrar a matriz econômica contratual por meio da extensão do prazo dos contratos, devido aos efeitos do transcurso do tempo sobre o processo de produção desses minérios, tendo em vista a questão do amadurecimento dos campos petrolíferos, que, com o passar do tempo, vão perdendo atratividade econômica.
Diante da impossibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro, a aplicação da mudança a contratos anteriormente celebrados ofenderia também o princípio constitucional que preconiza o respeito ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos.
Assim, ainda que se entenda válida a mudança no cálculo dos royalties promovida pelo PLV 10/2025, ela jamais poderia ser aplicada a contratos de concessão e partilha celebrados anteriormente, sob pena de ofensa a diversas garantias constitucionais que salvaguardam a segurança jurídica.
Em resumo, a radical mudança no cálculo dos royalties do petróleo promovida pelo PLV 10/2025, que ignorou até o abalizado olhar técnico da ANP, é incompatível com a Constituição, além de prejudicial ao interesse público. Se ela não for vetada pelo presidente da República – que, até aqui, nada tem a ver com este atentado à Lei Maior –, provavelmente gerará confusão, prejuízos ao setor, litígios e judicialização.
[1] Cf. https://www.brasilenergia.com.br/pretroleoegas/ep/anp-rejeita-calculo-do-preco-do-petroleo-proposto-pela-plv-102025.
[2] Ramon Tomazela. Manual dos preços de transferência. p. 37 e 573.
[3] Humberto Ávila. Teoria dos Princípios. p. 107.
[4] STF. ADI n° 1.158-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/05/1995.
[5] STF. ADI n° 3.783, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 06/06/2011.
[6] STF. ADI n° 2.019, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 21/06/2002.
[7] STF. AI n° 292.979-ED, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/2002
[8] STF. RE n° 571.969, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 03/02/2006.