Desafios regulatórios para garantia de acesso universal às terapias avançadas no Brasil

Um grande desafio global para os sistemas de saúde modernos será o de definir critérios regulatórios adequados para a avaliação e incorporação de novas tecnologias nos serviços de saúde oferecidos e custeados pelos respectivos sistemas. Dentre as novas tecnologias que emergem de forma significativa atualmente, destacam-se as tecnologias genericamente denominadas como “terapias avançadas”.

No Brasil, o conceito jurídico sobre o que é uma “terapia avançada” segue padrões internacionais de abordagem regulatória sobre a natureza jurídica dessas novas tecnologias e organiza de forma adequada esta nova fronteira tecnológica. No entanto, ainda há lacunas regulatórias que devem ser enfrentadas para que o acesso dos pacientes às terapias avançadas se torne possível, acesso este que, por vezes, será determinante para a preservação de vidas ou para evitar sequelas graves decorrentes de doenças tais como as doenças autoimunes, as doenças raras ou alguns tipos de cânceres, por exemplo.

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Conceito jurídico de terapias avançadas

Atualmente, o conceito jurídico sobre o que são as “terapias avançadas” está definido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da Resolução de Diretoria Colegiada 948/24, que dispõe sobre os requisitos sanitários para a regularização de medicamentos de uso humano. Conforme definido no art. 2o, XLVI, terapias avançadas são medicamentos:

Medicamento de Terapias Avançadas (MTA): medicamento biológico obtido ou elaborado a partir de células que foram submetidas a manipulação extensa e/ou que desempenham função distinta da original, ou que consiste em gene humano recombinante ou contém gene humano recombinante, incluindo terapia celular avançada, engenharia tecidual ou terapia gênica.

Conforme se depreende do conceito normativo, as terapias avançadas podem ser classificadas em três tipos diferentes:

terapia celular avançada, por meio da qual as características biológicas da célula são alteradas;
terapia gênica, que envolve a modificação da expressão de um gene in vivo (quando a modificação ocorre com a célula dentro do paciente) ou ex vivo (quando a célula é extraída do paciente e depois infundida novamente (p.e. o CAR-T)) e;
engenharia tecidual, por meio da qual é feita a formação de tecidos.

Cada terapia avançada aprovada pela Anvisa possui indicações específicas e perfis distintos de eficácia e segurança. Não devem ser comparadas entre si, salvo quando possuírem a mesma indicação em bula.

Uma das terapias avançadas mais difundidas atualmente é a CAR-T, que no Brasil é indicada para alguns cânceres hematológicos, como linfoma de células B e mieloma múltiplo, em pacientes que já passaram por outras linhas de tratamento. A Terapia CAR-T utiliza células do sistema imunológico do paciente para combater o câncer e é considerada um marco para estas novas fronteiras do cuidado oncológico, uma vez que apresenta efetivo potencial terapêutico e curativo.

Terapias avançadas são medicamentos

A atual legislação vigente no Brasil nos permite afirmar categoricamente que as terapias avançadas, embora tenham a palavra “terapia” no conceito, são, na verdade, produtos. Mais especificamente, são medicamentos.

De acordo com o art. 4º II, da Lei 5.991/1973, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, medicamento é definido como “o produto farmacêutico tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”.

As terapias avançadas, tais como o CAR-T, são consideradas medicamentos porque se encaixam no conceito tradicional deste tipo de produtos e preenchem todos os requisitos expostos no conceito legal para caracterizar um medicamento: são produtos farmacêuticos que possuem finalidade terapêutica (daí no nome terapia ao conceito) e são utilizados diretamente para tratar uma  ou mais doenças; possuem um processo de manufatura padronizado, envolvendo etapas controladas de coleta, modificação genética, expansão e formulação das células; são considerados produtos biológicos complexos, produzidos a partir da manipulação das células; seguem os requisitos regulatórios de medicamentos, ou seja, precisam demonstrar segurança, eficácia e qualidade em ensaios clínicos e dossiê técnico.

Se as terapias avançadas fossem procedimentos terapêuticos, elas não precisariam seguir essas etapas e nem a lógica de registro de produto. Também não existem estudos clínicos de procedimentos e nem processos de monitoramento pós-mercado ou, ainda, processos de manufatura padronizados.

Por essa razão é que a regulação da Anvisa, assim como a das agências reguladoras dos Estados Unidos (FDA) e da Europa (EMA), classifica terapias avançadas, tais como o CAR-T, como medicamentos. Há um consenso científico e regulatório de que tais produtos derivam de um processo industrial/farmacêutico voltado a fabricar um tipo de produto farmacêutico dotado de registro sanitário, bula, lote e rastreabilidade.

Desafios para a incorporação das terapias avançadas aos sistemas de saúde modernos

A incorporação das terapias avançadas ao sistema de saúde brasileiro enfrenta desafios regulatórios relevantes, para que se possa garantir que as terapias avançadas sejam incorporadas ao sistema de saúde brasileiro com garantia de que são produtos seguros, de qualidade e eficazes. Além disso, deve-se avançar com uma regulação que garanta o direito universal e integral à saúde definido nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal.

Destacarei aqui alguns dos aspectos regulatórios que devem ser aperfeiçoados, que considero estratégicos em curto prazo: i) registro e preço; ii) cobertura e financiamento pelo SUS; iii) cobertura e financiamento na saúde suplementar.

Registro e preço de entrada no mercado nacional

No que se refere ao registro dos medicamentos de terapias avançadas junto à Anvisa, algumas atualizações recentes foram importantes para possibilitar registro e comercialização nacional de terapias avançadas que já possuem robustas evidências científicas de sua eficácia.

Atualmente, o marco regulatório desenvolvido pela Anvisa é formado pelas seguintes normas: IN 270/2023, que dispõe sobre as boas práticas de fabricação complementares aos produtos de terapias avançadas; RDC 506/2021, que estabelece regras para a realização de pesquisas clinicas com produto de terapia avançada investigacional no Brasil: e RDC 505/2021, que dispõe sobre o registro de produto de terapia avançada.

No que se refere ao registro, três aspectos merecem atenção.

O primeiro é relacionado à eficácia destes novos produtos. Como são ainda tecnologias muito recentes, e com produção e aplicação praticamente personalizadas, ainda há muitas dúvidas sobre o momento em que tais terapias estão maduras o suficiente em termos de evidências científicas de eficácia terapêutica para fins de concessão de registro.

O segundo aspecto é que, após o registro, haja um acompanhamento pós-mercado bastante cuidadoso, para que a Anvisa possa identificar, em tempo real, se o medicamento de terapia avançada está comprovando sua eficácia (ou piorando, ou até melhorando a eficácia inicial) ou se o medicamento não se mostrou eficaz na vida real, ou ainda se foram reportados efeitos adversos que comprometam a segurança do produto. A atual regulação da Anvisa deixa aberta esta possibilidade, mas os processos de acompanhamento podem ser aperfeiçoados.

O terceiro e último ponto a ser equacionado no registro de um novo medicamento de terapias avançadas é a definição do preço inicial. No Brasil, o preço dos medicamentos é controlado. Conforme determina o art. 7º da Lei 10.742, de 2003, “os produtos novos e as novas apresentações de medicamentos que venham a ser incluídos na lista de produtos comercializados pela empresa produtora deverão observar, para fins da definição de preços iniciais, os critérios estabelecidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED)”.

No que se refere à precificação dos medicamentos de terapias avançadas, ainda há necessidades de aperfeiçoamento regulatório pela CMED, em especial para que a regulação seja capaz de adequar-se às características deste novo mercado.

A CMED está em processo de modernização de suas regras para precificar terapias avançadas, tendo realizado uma consulta pública para coletar dados e sugestões sobre como definir o preço desses tratamentos inovadores. As terapias avançadas, como as genéticas e celulares, são complexas e custosas, o que exige um modelo de precificação específico que considere seu valor clínico, investimento e sustentabilidade do sistema de saúde.

Atualmente, a CMED não tem uma regra específica publicada para essas terapias, mas está trabalhando em um novo arcabouço regulatório que substituirá a resolução mais antiga, a CMED 2/2004, para lidar com essa questão. Na consulta pública realizada, o edital de chamamento indicava a necessidade do estabelecimento de critérios novos para a precificação de medicamentos de terapias avançadas, com o objetivo de promover maior transparência, integridade pública, segurança jurídica, assim como o alinhamento normativo às melhores práticas regulatórias.

Na Europa, discute-se atualmente a precificação baseada em valor, que leva em consideração critérios que incluem o valor percebido pelo cliente (como economia de tempo, aumento de receita ou conveniência), os benefícios tangíveis e emocionais do produto, a disposição a pagar do público-alvo e a comparação com o valor oferecido por concorrentes ou, não havendo, do valor do custo do tratamento padrão oferecido pelo mercado. A precificação é baseada na percepção do cliente e no valor econômico que o produto gera, e não apenas nos custos de produção.

Cobertura e financiamento pelo SUS

O Brasil conta com um sistema de saúde público universal, o Sistema Único de Saúde. A incorporação de novas tecnologias ao SUS ocorre hoje por duas vias, complementares entre si, sendo uma a via principal e outra a via de exceção.

A via principal é a exposta na Lei 8.080, de 1990, por meio da qual o Poder Executivo define a incorporação destas novas tecnologias ao SUS por meio de um processo complexo que tem na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde no SUS (Conitec) seu órgão de expertise técnica consultivo.

A via de exceção é a incorporação por meio do fenômeno da Judicialização da Saúde, quando o Poder Judiciário, com base no direito constitucional à saúde e em resposta às ações individuais e coletivas, obriga o Poder Público a arcar com os custos de um determinado tratamento ou produto que o paciente necessita e que ainda não se encontra formalmente incorporado.

O SUS já incorporou mais de 150 medicamentos de terapias avançadas, principalmente para o tratamento de doenças raras e oncológicas.

Cobertura e financiamento pelas operadoras de planos de saúde

O setor de saúde suplementar no Brasil, que oferta planos de saúde, é fortemente regulado pelo Estado (Leis 9.961/2000 e 9.656/1998).

Conforme previsto no art. 10 da Lei 9.656/1998, os planos devem oferecer o “plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 da Lei”.

O art. 12, por sua vez, assegura as seguintes coberturas mínimas:

quando incluir atendimento ambulatorial, a cobertura mínima que garanta tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes; e
quando incluir internação hospitalar, a cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar.

Assim, os medicamentos de terapias avançadas que visam o tratamento de neoplasias devem ser obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde, por fazerem parte da cobertura mínima obrigatória prevista pela Lei para os Planos-Referência. Sobre a obrigatoriedade desta cobertura, resta pouco espaço para qualquer interpretação contrária.

Já no que se refere aos medicamentos de terapias avançadas que visam o tratamento de outras doenças que constem da CID, como as doenças raras por exemplo, a obrigatoriedade da cobertura pode ser interpretada a partir do novo texto do art. 10 da Lei 9.656/1998, dada pela Lei 14.454/2022.

O art. 10 dispõe em seu novo texto, §13, “que em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol de procedimentos, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: i) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou ii) existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais”.

O STF validou a constitucionalidade desta exigência no âmbito de decisão tomada em decorrência da ADI 7265/2025. O tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente o pedido, para conferir interpretação conforme à Constituição ao §13 do art. 10 da Lei 9.656/1998, incluído pela Lei 14.454/2022, de modo a adequar os critérios que geram a obrigação de cobertura de tratamento não listado no rol da ANS, nos termos de algumas teses detalhadas no julgado e que definem melhor os requisitos a serem cumpridos para a cobertura nos casos de medicamentos não incorporados.

É fundamental que Anvisa e ANS se harmonizem em termos regulatórios para que, de um lado, a Anvisa defina de forma clara e direta o que é de sua competência, ou seja, o conceito e a natureza destes produtos, bem como as regras para seu registro e comércio no país; de outro lado, para que a ANS obrigue as operadoras de planos de saúde a cobrir o que a lei já determina como de cobertura obrigatória, tais como os medicamentos de terapias avançadas para tratamento oncológicos, e também avance na regulação sobre as coberturas devidas pelos planos de saúde para os demais medicamentos de terapias avançadas, para tratamentos de doenças raras e outros tipos de doenças. 

Considerações finais

O desafiador cenário regulatório aumenta a insegurança jurídica, influenciando diretamente no tempo da jornada dos pacientes e limitando o acesso de pacientes elegíveis a tratamentos que poderia curar suas doenças e salvar suas vidas.

Em doenças de progressão rápida, atrasos no acesso, derivados de demoras na incorporação ou na simples autorização para realização do procedimento, podem comprometer a elegibilidade e reduzir chances de sucesso, podendo levar à evolução da doença ou óbito.

No âmbito do sistema público de saúde, é fundamental que o SUS acelere as análises de incorporação e busque novas estratégias que garantam o acesso às terapias avançadas pelos pacientes do SUS elegíveis para estes tratamentos.

Dentre as estratégias possíveis, além do aperfeiçoamento regulatório, avançar com as parcerias de desenvolvimento produtivo ou com práticas de compartilhamento de risco mostram-se caminhos possíveis, além de novas práticas de negociação e aquisição destes produtos junto às indústrias, que levem em consideração o objetivo comum de garantir ao paciente o acesso ao melhor tratamento disponível para sua condição de saúde.

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Já no campo da saúde suplementar, é essencial que operadoras cumpram a legislação, garantindo que o medicamento certo chegue ao paciente certo, no momento certo. Os medicamentos oncológicos de terapias a avançadas têm cobertura expressamente assegurada pela Lei 9.656/1998, e as operadoras de planos de saúde devem organizar-se para atender a essas novas demandas de forma plena e responsável.

No que se refere aos demais medicamentos de terapias avançadas, para doenças raras por exemplo, deve-se avançar para modelos de cobertura e incorporação inovadores que tenham como interesse último a garantia de melhor interesse do paciente.

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