Acordos híbridos e a coerência institucional na justiça negocial brasileira

A expansão da justiça negocial transformou profundamente a forma como o Estado lida com a responsabilização penal e administrativa. A introdução do Acordo de Não Persecução Penal (art. 28-A do Código de Processo Penal) e, mais recentemente, do Acordo de Não Persecução Cível, regulamentado pela Resolução 306/2025 do Conselho Nacional do Ministério Público, consolidou um novo paradigma: o de que a solução consensual pode ser instrumento legítimo de eficiência e justiça.

Esse processo de consolidação trouxe à tona um desafio relevante: a fragmentação entre as esferas penal e cível. O Acordo de Não Persecução Penal, embora previsto em norma federal, é implementado de forma descentralizada, conforme as regulamentações e práticas próprias de cada Ministério Público estadual.

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Essa diversidade é compreensível, mas gera variações que dificultam a formação de padrões uniformes e a previsibilidade institucional. No campo da improbidade administrativa, o recente regramento nacional ainda se encontra em fase de amadurecimento, com desafios práticos relacionados à quantificação do dano, à homologação judicial e ao acompanhamento da execução dos acordos.

Quando um mesmo fato possui repercussões simultâneas nas duas esferas, a falta de coordenação pode levar a soluções incongruentes. A negociação criminal pode estabelecer obrigações reparatórias distintas daquelas fixadas no acordo cível, produzindo sobreposição de deveres e comprometendo a coerência do sistema. A lógica da consensualidade, que deveria promover racionalidade e estabilidade, enfraquece quando conduzida por trilhas paralelas e sem comunicação entre os órgãos responsáveis.

É nesse cenário que se insere a noção de acordos híbridos, expressão utilizada neste artigo para designar tratativas simultâneas e integradas entre as instâncias encarregadas da persecução penal e da responsabilização por ato de improbidade.

A ideia não consiste em criar um instrumento jurídico, mas em desenvolver uma prática institucional coordenada, capaz de alinhar finalidades, unificar parâmetros e evitar respostas estatais contraditórias. A simultaneidade das negociações permite que o Estado aja de modo coerente, assegurando proporcionalidade e mínima previsibilidade no ambiente da negociação.

A implementação dessa prática requer método. A articulação entre esferas distintas deve respeitar a autonomia funcional do Ministério Público, mas também reconhecer que a fragmentação excessiva mina a credibilidade da política negocial. A construção de rotinas mínimas de comunicação, a criação de grupos de trabalho temáticos e a padronização de modelos básicos de cláusulas são iniciativas que podem favorecer a coerência sem comprometer a independência de atuação. A integração não depende de hierarquia, mas de cooperação qualificada.

A segurança das negociações, por sua vez, exige precisão. A confissão penal eventualmente obtida em um acordo deve ter alcance delimitado, sem servir como prova autônoma na esfera cível. Essa separação é indispensável à preservação dos direitos fundamentais e à integridade das tratativas para celebração do acordo.

Da mesma forma, a fixação do valor do dano e a forma de pagamento devem se apoiar em critérios verificáveis, ajustados à capacidade econômica do compromissário. A investigação defensiva, nesse contexto, assume papel relevante ao produzir bases que permitem ajustar a proposta ao caso concreto e reduzir riscos de inadimplemento, tornando o acordo factível.

Essas preocupações não refletem idealismo, mas necessidade de aprimoramento institucional. A justiça negocial consolidou-se como prática e, por isso, deve buscar coerência e estabilidade. A Resolução 306/2025 do CNMP, ao reconhecer a importância da coordenação entre órgãos, evidencia que a consensualidade demanda método e prudência. O êxito desse modelo dependerá da capacidade de alinhar suas múltiplas frentes de atuação, sem sobreposição de funções nem renúncia às garantias processuais que legitimam o exercício da persecução.

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A maturidade da justiça negocial será medida pela qualidade de sua coerência interna. Acordos híbridos, concebidos como práticas simultâneas e coordenadas, representam um caminho possível para consolidar uma cultura institucional de integração e racionalidade.

O desafio não está em criar novos instrumentos, mas em fazer com que os já existentes dialoguem de maneira eficaz. A coerência entre o penal e o cível é mais do que uma questão técnica: é o elemento que definirá se a consensualidade se afirmará como uma prática institucional ou permanecerá fragmentada em iniciativas isoladas.

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