Um dos principais debates no mundo em termos de energia hoje é o da transição energética, que consiste na mudança da matriz energética, com a substituição progressiva por fontes renováveis. Porém, em países do Sul Global, como o Brasil, o debate precisa ser feito à luz da realidade da segurança energética para que todos tenham acesso garantido à energia.
A segurança energética integra um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), no qual o item 7 trata de energia limpa e acessível e busca garantir o acesso universal, moderno e a preços acessíveis à energia. O CEO da Copa Energia, Pedro Turqueto, resume bem a questão ao chamar atenção para o fator humano no processo de transição. “Transição energética é também um processo humano, que precisa considerar quem ainda vive sem acesso digno à energia”, defende.
O governo brasileiro define a pobreza energética como a “ausência de acesso aos serviços energéticos modernos por pessoas ou grupos”. A União Europeia, por sua vez, afirma que a pobreza energética acontece quando os moradores de um lar precisam reduzir seu consumo de energia para um nível que impacta negativamente sua saúde e bem-estar. A Política Nacional de Transição Energética, de agosto de 2024, fala em uma “situação em que domicílios ou comunidades não têm acesso a uma cesta básica de serviços energéticos ou não têm plenamente satisfeitas suas necessidades energéticas”. Outra definição que é bem aceita internacionalmente é considerar pobreza energética a realidade de uma pessoa ou família que precisa comprometer 10% ou mais da renda familiar com as contas de luz e gás.
De acordo com informações do Observatório Brasileiro de Erradicação da Pobreza Energética (Obepe), com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 99,8% dos lares brasileiros estão conectados à rede de energia. No entanto, cerca de um quarto das famílias gasta mais de 10% da renda com energia. Além disso, ainda que estejam conectadas à rede de energia, na prática as pessoas usam outras fontes energéticas menos seguras e eficientes, como a lenha e o carvão. O Balanço Energético Nacional apontou que em 2024 cerca de 23% dos lares ainda usavam lenha. Alguns dos riscos envolvidos no uso de lenha são o perigo de queimaduras e o desenvolvimento de problemas respiratórios.
Diante desta realidade, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) aponta que, cotidianamente, assistentes sociais de todo o país – especialmente nas regiões Norte e Nordeste – atendem famílias que vivem sem acesso à energia, principalmente no campo, na zona rural. “É comum encontrarmos durante a realização de visitas domiciliares famílias cozendo alimentos à base da queima da lenha. Esse cenário também é encontrado, contraditoriamente, em alguns centros urbanos, o que nos mostra o quanto a ‘mercadoria energia’, mediada pela compra, ainda não é para todas as pessoas”, alerta Iara Fraga, do CFESS.
A assistente social reforça que o acesso à energia é elemento essencial para a viabilização de uma existência digna, ao possibilitar a cocção de alimentos, a iluminação, o conforto térmico, a preservação da saúde, a infraestrutura necessária para a educação, a comunicação, o lazer e o transporte. “Então, quando falta acesso a meios energéticos seguros, direitos fundamentais são violados, com drásticas consequências para a vida das pessoas”, comenta Fraga ao citar, como exemplo, as graves implicações do uso de lenha para cozinhar.
Mas não somente: a ausência de acesso à energia elétrica, ou o acesso limitado – seja pelo fornecimento insuficiente (baixa potência, cabeamento sem qualidade) ou irregular (por meio de “gatos”) — impõe barreiras para a garantia de outros direitos sociais, como a saúde e a educação. Situações de insegurança alimentar, decorrentes das formas de armazenamento e cocção de alimentos, bem como a falta de condições para manter o equilíbrio térmico, são exemplos de impactos à saúde que, consequentemente, comprometem também os processos de aprendizagem no ambiente doméstico.
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Nesse contexto, o CFESS chama atenção para a dimensão estrutural da desigualdade energética no Brasil, que se expressa não apenas no cotidiano das famílias atendidas, mas na própria lógica de distribuição da infraestrutura energética no país. Como aponta Vitor Alencar, assessor jurídico do CFESS e doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
“Consideramos fundamental explicitar a injustiça energética que se perpetua no país. Não ‘falta energia’ para os empresários das indústrias, mas ainda ‘falta energia’ para milhares de famílias da classe trabalhadora brasileira”, critica ele.
E completa: “O Estado garante as condições de infraestrutura para que as empresas energéticas forneçam energia ao setor industrial sem interrupção, seja através de combustível fóssil (o carvão mineral, responsável por graves impactos sociais e ambientais, ainda está entre os utilizados no Brasil), ou por meio de bens renováveis. Em toda a zona costeira nordestina, por exemplo, as eólicas e as fazendas fotovoltaicas garantem o fornecimento energético para grandes indústrias, ao passo que comunidades vizinhas aos parques eólicos sobrevivem sem energia. Essa contradição evidencia a base da pobreza energética no país.”
Estudo da Organização Mundial de Saúde de 2022 apontou que mais de 3 milhões de pessoas morrem prematuramente todos os anos de doenças causadas pela poluição do ar doméstico, sendo que 32% são devidas a doença cardíaca isquêmica, 21% a infecções respiratórias inferiores, 23% a acidente vascular cerebral, 19% a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e 6% a câncer do pulmão. Nas crianças com menos de 5 anos de idade, a exposição à poluição atmosférica doméstica é responsável por quase metade de todas as mortes por pneumonia. Ainda segundo o estudo da OMS, as contaminações pelo uso de meios poluentes em ambiente doméstico podem causar, também, inflamação nas vias respiratórias e nos pulmões, assim como ardor nos olhos, tosse ou irritação no nariz e na garganta.
Outra questão apontada pela OMS diz respeito à coleta de materiais (especialmente madeira que vira lenha ou carvão) para utilização como combustível. Durante uma semana, são despendidas até quarenta horas pelas famílias, o que torna difícil às mulheres procurarem emprego ou participarem de instâncias de decisão política locais e às crianças irem à escola.
Diogo Pignataro, presidente do Instituto Brasileiro de Transição Energética (Inté), ressalta que o acesso universal à energia deve ser visto como um direito humano indispensável à dignidade humana e ao desenvolvimento, inserto num ambiente de interdependência entre todos os direitos humanos.
“Assim, o nexo causal entre energia, pobreza e desenvolvimento é patente e acarreta obrigações a serem perquiridas pelos Estados, posto que, embora a energia não represente diretamente uma necessidade vital humana, ela é crucial para o preenchimento de muitas necessidades e serviços básicos humanos, de maneira que a provisão de acesso à energia elétrica não reduz a pobreza simplesmente, mas cria condições para uma emancipação do ser humano, detendo um papel crítico e fundamental para o desenvolvimento humano e socioeconômico”, afirma ao indicar o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), mais conhecido como “gás de cozinha”, como uma alternativa eficiente no combate à pobreza energética no Brasil.
Segundo Turqueto, “o uso de lenha ou carvão para cozinhar representa riscos à saúde, ao meio ambiente e ao desenvolvimento social. Nesse cenário, o acesso ao GLP torna-se um vetor essencial de inclusão e dignidade”.
Para o presidente do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), Sergio Bandeira de Mello, “o botijão é transformador, porque ele leva dignidade às pessoas”. E completa: “As pessoas estão vivendo num tempo de energias muito rudimentares. A pobreza energética tem cara, tem sexo, tem cor. São mulheres pobres e crianças que estão catando lenha. O GLP é a primeira energia que a gente tem hoje. É a solução.”
O Sindigás destaca que um maior uso do GLP pode trazer maior conveniência para as pessoas, que poderão manter a cozinha limpa sem fuligem, bem como evitar doenças e acidentes. A instituição também afirma que a substituição da lenha e do carvão por GLP promove empoderamento, com mais dignidade e autonomia, especialmente para as mulheres.
Turqueto adiciona à lista a economia ao Sistema Único de Saúde (SUS): “Ao reduzir a incidência de doenças respiratórias e hospitalizações associadas à queima de biomassa, o acesso ao GLP apresenta potencial de aliviar gastos relevantes do SUS”.
O GLP no Brasil
O Brasil é o sétimo país que mais consome GLP em residências no mundo e o 11º em consumo global. Dados do governo federal apontam que, atualmente, há cerca de 140,8 milhões de recipientes em circulação, dos quais 15,4 milhões foram qualificados em 2024, com vida útil de até 72 meses.
O GLP movimenta mensalmente cerca de 35 milhões de botijões, o equivalente a 13 unidades entregues por segundo. O país conta com mais de 59 mil revendas autorizadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e gera aproximadamente 330 mil empregos diretos e indiretos. Apenas em ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o setor recolheu R$ 10,5 bilhões no último ano.
Dados da PNAD apontam que 91% das pessoas declaram usar GLP e 96% dizem estar equipados para usá-lo. “Essa ampla capilaridade é resultado de uma cadeia bem estruturada e de investimentos contínuos em logística e segurança, que são referência internacional”, explica Pedro Turqueto.
As facilidades logísticas estão entre os principais motivos para o GLP ser considerado eficiente no combate à pobreza energética. O gás já está disponível em todo o território nacional, não requer uma instalação de rede e, apesar do debate comum sobre o preço do botijão, na maioria dos estados o GLP é mais barato do que a energia elétrica. Além disso, é claro, de ser mais seguro e eficiente que a lenha e o carvão.
Mesmo com as facilidades já presentes para o uso do GLP no Brasil, ainda existe uma lacuna no fornecimento. Na visão do CEO da Copa Energia, “o principal desafio do setor é assegurar o acesso universal e contínuo ao GLP, especialmente em regiões onde a lenha ainda é a principal fonte de energia para cozinhar”.
Há no Brasil ainda outro obstáculo, mas não para a ampliação do GLP na cozinha, e sim para que ele possa ser empregado em outras atividades. Existem hoje restrições ao uso do gás no setor industrial.
Pedro Turqueto acredita que há um potencial valioso no uso em diferentes setores. “Durante a pandemia de Covid-19, um gerador movido a GLP garantiu o funcionamento do hospital de campanha de Campo Grande”, relata. “Outro projeto utiliza o GLP para a oxigenação de tanques de piscicultura, demonstrando sua viabilidade e eficiência na produção de peixes, e trazendo um grande benefício principalmente na agricultura familiar”, acrescenta.
Políticas públicas importantes
Este ano, o Brasil substituiu o Auxílio Gás pelo Gás do Povo. Criado em setembro por meio da Medida Provisória 1.313/2025, o novo programa criou a possibilidade de retirada grátis de botijões de gás para famílias inscritas no CadÚnico. Na prática, ele funciona como uma expansão do programa anterior, com mais benefícios acumulados aos que já existiam.
O presidente do Sindigás destaca que é preciso ter atenção para uma implementação adequada do programa, mas é otimista: “Esse programa, colocando ele em funcionamento, o Brasil vai virar uma referência no sul global em combate à pobreza energética”.
Ao Estúdio JOTA, o Ministério de Minas e Energia afirmou que “o Gás do Povo é um exemplo claro de como o acesso ao GLP e ao cozimento limpo é parte fundamental do combate à pobreza energética”. “As ações relacionadas ao programa também visam a justiça social, por meio do acesso a formas de cozimento limpo pelas famílias brasileiras, e a saúde pública, reduzindo em até 50% o uso de lenha e carvão nas residências”, afirma a pasta.
O ministério destaca também que “a medida tem impacto direto na saúde de mulheres e crianças, além de contribuir para a redução de emissões de dióxido de carbono e de particulados. O programa também garante justiça energética, por meio do alívio financeiro das famílias para adquirir o gás de cozinha.”
Para a deputada Duda Salabert (PDT-MG), os pontos mais importantes para combater a pobreza energética no Brasil estão no desenvolvimento e implementação de políticas públicas. “Programas como o Luz para Todos e o Gás do Povo são fundamentais para garantirmos que a dignidade energética seja alcançada por todas as famílias brasileiras. O Brasil saiu do mapa da fome recentemente, após anos de políticas propositalmente construídas para não levarmos o Estado – da alimentação à moradia, passando pela energia – a quem mais precisa dele.”
Ela reforça que, com o auxílio do gás, a população poderá usar esse recurso para investir em outras coisas, como alimentos mais saudáveis e frescos, moradia, estudo, entre outras. “Isso sem falar naqueles brasileiros que, antes, não tinham acesso a energia para cozinhar: o que contribuirá para darmos mais um salto para assegurarmos o direito à alimentação, à segurança alimentar”, diz.
Transição energética e COP 30
O Gás do Povo entra em vigor em novembro, mesmo mês da realização da COP 30, que acontece em Belém do Pará. A transição energética é o principal tema da conferência, e o papel do GLP no Brasil ganhará destaque. Segundo o MME, “não existe transição energética se não ocorrer o acesso a sistemas energéticos limpos e seguros. […] Na COP 30, o Brasil levará como exemplo o Gás do Povo”.
O movimento está em consonância com o que acredita Sergio Bandeira de Mello, do Sindigás: “A COP 30 é uma oportunidade muito importante para o Brasil divulgar esse programa. Apesar de ser um combustível fóssil, a gente não tem que ter vergonha sobre isso”, completou.
Bandeira de Mello reforça que a transição energética precisa considerar a realidade das populações de baixa renda. “Eu acho que o mais importante é lembrar que a transformação energética tem que ser justa e inclusiva. Tem que lembrar dessas duas palavras: justa e inclusiva”, disse, comentando os dados de pobreza energética no Brasil.
“É fácil quem está no hemisfério norte dizer que quer hidrogênio verde. Aqui a gente está falando em um estágio muito anterior”, afirma. “Para ele, não é possível o Brasil embarcar em um debate cujo foco é trocar o carro por um elétrico ou instalar placas de energia solar nas casas. Temos avançado em várias áreas, mas não estamos deixando os outros para trás”, diz.