Está previsto para a sessão desta quarta-feira (19/11) do Supremo Tribunal Federal o julgamento da Reclamação Constitucional (Rcl) 73.295, que discutirá a possibilidade de instauração de incidente de assunção de competência (IAC) no âmbito da própria corte. Trata-se do primeiro caso em que o STF avalia formalmente a possibilidade de instaurar o IAC em reclamação.
A controvérsia tem origem em ação trabalhista, ajuizada por servidora contratada sob o regime celetista, antes da Constituição de 1988, pela extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), posteriormente sucedida pela Funasa. Após a Lei 8.112/1990, no entanto, a servidora foi enquadrada como estatutária. Na ação, ela defende a nulidade da transposição de regime e pede, como consequência, o recebimento de FGTS em todo o período.
A Funasa, contudo, sustenta a competência da Justiça Comum, com base na ADI 3.395[1], na qual o STF afastou a competência da Justiça do Trabalho para causas relativas a vínculos jurídico-estatutários. A Justiça do Trabalho, por outro lado, afirma ser competente para julgar essas ações, apoiando-se na ADI 1.150[2] e nos Temas 853[3] e 928[4] da repercussão geral. Isso porque, não sendo hipótese de estabilização pelo art. 19 do ADCT, o vínculo permaneceria regido pela CLT, inclusive após a instituição do regime jurídico único.
A discussão sobre a competência para apreciar essas ações de servidores da Funasa passou a chegar ao STF em Reclamações Constitucionais. Diante da divergência entre as Turmas do STF[5], o ministro Gilmar Mendes, relator, votou na sessão virtual iniciada em 16.5.2025 pela instauração do IAC, sendo acompanhado pelos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Luiz Fux e Dias Toffoli. O ministro Edson Fachin abriu divergência. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e retorna à pauta nesta semana.
Na Rcl 73.295, o plenário debaterá, portanto, a possibilidade de instauração de Incidente de Assunção de Competência perante o STF. A questão em discussão tem um propósito evidente: identificar um mecanismo para a uniformização de jurisprudência do Supremo em processos originários, em especial nas Reclamações Constitucionais.
Razões para o cabimento e para atenção sobre a instauração de IAC no STF
O acervo de reclamações constitucionais no Supremo vem crescendo de forma consistente, ao menos desde 2018, em trajetória inversa à do acervo geral do tribunal, que registra queda no número de novos processos[6]. Conforme destacado pelo ministro Luís Roberto Barroso na sessão de encerramento de sua gestão à frente da presidência[7], o acervo total chegou a apenas 19.118 processos, o menor acervo desde 1993. Houve uma redução de 32,8% nos processos recursais, em razão da gestão eficiente de precedentes.
Ocorre que a criação de precedentes qualificados em repercussão geral, súmula vinculante e controle concentrado aumenta a base de fundamentos para Reclamação Constitucional: qualquer interessado pode acessar o STF para garantir a autoridade desses precedentes. Como resultado, no último quinquênio (2020 a 2024), o recebimento de Reclamações registrou um aumento de 89% em relação ao período anterior.
Esse aumento do acervo de Reclamações apresenta dois desafios ao STF. O primeiro relacionado à gestão processual eficiente, especialmente para a garantia de razoável duração do processo. O alto volume de processos pressiona pelo excesso de decisões monocráticas, com a consequente ampliação do risco de decisões conflitantes entre os ministros. O segundo desafio diz respeito, assim, à necessidade de uniformização da jurisprudência do Supremo e de manutenção de sua integridade, estabilidade e coerência.
A reclamação – como instrumento constitucional de preservação da competência dos tribunais e de garantia da autoridade de suas decisões – tem sido cada vez mais utilizada, no âmbito do STF, como mecanismo de interpretação de seus precedentes obrigatórios. A decisão em reclamação produz, portanto, não apenas efeitos subjetivos, ao definir se o precedente foi corretamente aplicado ao caso concreto.
Ela também tem efeitos objetivos, ao explicitar a interpretação atribuída pelo STF ao próprio precedente[8]. Nessa interpretação, o tribunal pode ampliar o alcance da tese jurídica para hipóteses não contempladas em seu texto original, estabelecer distinções (distinguishing) ou promover a superação do entendimento (overruling).
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Essa centralidade da reclamação na dinâmica de precedentes tem contribuído para o surgimento de divergências interpretativas entre ministros e entre as Turmas, tanto em questões processuais quanto de mérito. Diferentes leituras sobre a aderência estrita, o exaurimento de instâncias, e os efeitos rescisórios das reclamações ajuizadas em fase de execução são exemplos de matérias em que ainda não há uniformidade.
Embora dissensos sejam naturais na dinâmica jurisdicional, em especial em fases de sedimentação jurisprudencial, sua persistência em temas que se repetem no tribunal compromete a segurança jurídica, a previsibilidade e a própria efetividade da sistemática de precedentes.
É nesse cenário que o IAC se apresenta como instrumento relevante para uniformização interna. Ao deslocar o julgamento do órgão fracionário para o plenário, o incidente possibilita que questões jurídicas relevantes sejam decididas pela totalidade do tribunal, conferindo orientação unificada.
Esse aspecto assume especial importância no STF, uma vez que, salvo a possibilidade de submissão do processo ao plenário por iniciativa do relator, não há outro mecanismo para compor divergências entre as Turmas, já que os embargos de divergência são restritos à competência recursal extraordinária da corte.
A instauração do incidente possibilita solução rápida pelo plenário para controvérsias que estejam gerando decisões dissonantes e forma precedente obrigatório, nos termos do art. 927 do CPC. Contribui, assim, para a integridade, estabilidade e coerência da jurisprudência e para a racionalidade do sistema de precedentes brasileiro. O mecanismo também se alinha à eficiência institucional, ao reduzir a dispersão interpretativa, desestimular litigiosidade repetitiva e aumentar a previsibilidade para jurisdicionados e magistrados.
É preciso, de toda forma, um alerta. Caso o STF venha a admitir a instauração de IAC para uniformizar sua jurisprudência, será preciso debater quais serão os efeitos da decisão que julgar o incidente. Afinal, nos termos do § 3º do art. 947 do CPC, “o incidente vinculará todos os juízes e órgãos fracionários” do tribunal.
A ideia de vinculação das duas Turmas do Supremo, ou mesmo dos ministros, entretanto, não é compatível com a ausência de vinculação da própria corte quanto às suas decisões sobre a constitucionalidade das normas. Assim sendo, diferente dos demais tribunais, no STF, em princípio, a decisão no IAC não vincularia o próprio tribunal, seus órgãos e juízes a ele subordinados.
Qual seria, assim, o efeito de um IAC julgado pelo STF? Em princípio, o objetivo é garantir a uniformidade de uma orientação jurídica, com uma eficácia expansiva da decisão para que ela seja observada para solucionar controvérsias similares por todos os demais tribunais do país, tal como ocorre na repercussão geral.
A possibilidade de fixar um precedente de observância obrigatória em outras classes processuais amplia a competência do Supremo como uma corte de precedentes. Ela autoriza que o STF fixe teses jurídicas em controvérsias apresentadas, por exemplo, em Reclamação, Mandado de Segurança, Habeas Corpus e Recurso Ordinário.
O ponto de atenção, entretanto, é que nessas classes não há necessariamente questão constitucional em debate. O que significa que o STF poderia fixar precedentes qualificados relacionados à interpretação de legislação federal ou trabalhista. A competência constitucional para uniformização de legislação federal ou trabalhista, no entanto, foi confiada a outros tribunais. A admissão do IAC, assim, deve se limitar a interpretar questões constitucionais suscitadas em outras classes processuais.
Conclusão
A análise do cabimento do IAC em reclamação constitucional sinaliza um momento de amadurecimento do sistema de precedentes no STF. A técnica pode servir como instrumento de reforço da integridade e da coerência da jurisprudência, sobretudo em temas que têm gerado leituras dissonantes entre ministros e Turmas.
A possibilidade de instauração do IAC no STF, contudo, não pode usurpar competência dos demais tribunais superiores. A fixação de precedentes qualificados pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Superior do Trabalho, quando não se tratar de interpretação constitucional, deve ser prestigiada.
Apenas assim será preservada a racionalidade do sistema nacional de precedentes qualificados, com a progressiva garantia de isonomia, segurança jurídica e atuação jurisdicional mais célere e efetiva.
[1] Na ADI 3.395, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 15.04.2020, o STF interpretou a expressão “relações de trabalho” constante no art. 114, I, da Constituição, para afastar da competência da Justiça do Trabalho as ações envolvendo vínculos jurídico-estatutários.
[2] Na ADI 1.150, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 01.10.1997, o Tribunal analisou a Lei nº 10.098/1994, do Estado do Rio Grande do Sul, e declarou inconstitucional a transposição automática de servidor que ingressou sob o vínculo celetista, antes da Constituição Federal e não foi estabilizado pelo art. 19 do ADCT, para o regime estatutário.
[3] Tema 853: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar demandas visando a obter prestações de natureza trabalhista, ajuizadas contra órgãos da Administração Pública por servidores que ingressaram em seus quadros, sem concurso público, antes do advento da CF/88, sob regime da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.” (ARE 906.491, Rel. Min. Teori Zavascki, j. em 1º.10.2015).
[4] Tema 928: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar ações relativas às verbas trabalhistas referentes ao período em que o servidor mantinha vínculo celetista com a Administração, antes da transposição para o regime estatutário.” (ARE 1.001.075, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 8.12.2016)
[5] O Ministro Gilmar Mendes, a Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Alexandre de Moraes têm decisões em reclamações reconhecendo a competência da Justiça comum. O Ministro André Mendonça, o Ministro Nunes Marques, o Ministro Edson Fachin, o Ministro Flávio Dino, o Ministro Dias Toffoli, o Ministro Cristiano Zanin e o Ministro Luiz Fux proferiram decisões rejeitando as reclamações, mantendo-se a competência da Justiça do Trabalho.
[6] Dados disponíveis no painel Corte Aberta do STF: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/corte_aberta/corte_aberta.html. Acesso em: 16.11.2025.
[7] Disponivel em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-apresenta-balanco-de-gestao-no-stf-e-no-cnj/. Acesso em 16.11.2025.
[8] A constatação, em sede de reclamação constitucional, de divergências interpretativas, seja nos tribunais de origem seja no próprio STF, também faz com que ela seja um importante instrumento para reconhecimento de novos temas de repercussão geral. Isso ocorreu, por exemplo, nas discussões sobre o reconhecimento de vínculo de emprego em novas formas de prestação de serviços, incluindo trabalhadores plataformizados e hipóteses de pejotização (temas 1291 e 1389), na distribuição do ônus da prova acerca de eventual conduta culposa da Administração Pública em contratos de terceirização (tema 1118) e na legitimidade passiva da União em demandas relativas ao fornecimento de medicamentos não padronizados no SUS (tema 1234).