Advocacia e lavagem de capitais

O relatório mais recente da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) cobrou do Brasil a adoção de mecanismos específicos para prevenir a lavagem de dinheiro em escritórios de advocacia — um tema que há anos enfrenta resistência dentro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Segundo o documento, embora a Lei 9.613/1998 já estabeleça medidas amplas de prevenção e repressão ao crime de lavagem, o país ainda não regulamentou a inclusão de advogados e outros profissionais jurídicos entre os obrigados a registrar e comunicar operações suspeitas.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

A ausência de regulação, conforme apontado pela UNCAC, contrasta com a crescente preocupação de organismos internacionais, como o GAFI, que em reiteradas ocasiões advertiram o Brasil por não exigir dos advogados o reporte de transações financeiras potencialmente ilícitas.

Tentativas de autorregulação da advocacia, no entanto, não prosperaram. A última proposta, apresentada em 2020 durante a gestão de Felipe Santa Cruz na OAB, sugeria um modelo interno de prevenção à lavagem de dinheiro que preservasse o sigilo profissional, mas responsabilizasse disciplinarmente advogados que utilizassem honorários para repassar valores ilegais.

O texto previa a comunicação ao Coaf apenas em casos específicos — como operações de compra e venda de imóveis ou participações societárias —, mas foi rejeitado pelo Conselho Federal em 2021, sob o argumento de que poderia comprometer a confidencialidade entre advogado e cliente. A discussão permanece aberta e expõe o desafio de equilibrar a salvaguarda do sigilo profissional, essencial ao direito de defesa, com as exigências internacionais de transparência e integridade na prática jurídica.

Diante desse cenário, observa-se, nas últimas décadas, uma tendência global de ampliar as obrigações de cooperação impostas aos profissionais da área jurídica, em especial aos advogados, aproximando-os das responsabilidades tradicionalmente atribuídas ao setor financeiro no enfrentamento da lavagem de capitais.

Tal movimento decorre do reconhecimento de que o advogado, em razão de sua atuação, pode ter acesso a informações relevantes sobre atividades ilícitas de seus clientes, cujo compartilhamento com as autoridades competentes pode ser de grande utilidade para a investigação de crimes. Essa perspectiva encontra respaldo em diversos instrumentos internacionais, como as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI/FATF) e as Diretivas 2001/97/CE e 2005/60/CE da União Europeia, que qualificam o advogado como profissional em posição estratégica para prevenir o branqueamento de capitais ao abster-se de colaborar, direta ou indiretamente, com operações de origem ilícita.

Nas recomendações do GAFI/FATF, o advogado é expressamente mencionado como possível sujeito ativo do crime de lavagem de capitais, devendo observar deveres de diligência e registro na relação com seus clientes. A Recomendação 22 estende as obrigações de controle e comunicação, tradicionalmente aplicáveis ao setor financeiro, também às chamadas atividades e profissões não financeiras designadas (APNFDs).

Entre essas, incluem-se os advogados, tabeliães e contadores que participem de transações como compra e venda de imóveis, gestão de recursos e ativos financeiros, administração de contas ou constituição e operação de pessoas jurídicas. Nessas hipóteses, o profissional tem o dever de identificar e comunicar movimentações suspeitas que possam configurar indícios de lavagem de capitais.

A Recomendação 23 reforça tal obrigação, mas ressalva o direito ao sigilo profissional, reconhecendo que o dever de informar não se aplica às informações obtidas no exercício da advocacia em circunstâncias protegidas por privilégio legal. Assim, caberá a cada país regulamentar as situações que se enquadram nesse sigilo, geralmente abrangendo aquelas em que o advogado atua na análise da posição jurídica do cliente ou na sua defesa em processos judiciais, administrativos ou arbitrais.

Trata-se, portanto, de harmonizar a exigência internacional de transparência e prevenção à lavagem com a salvaguarda de um dos pilares essenciais da advocacia: a confidencialidade inerente à relação entre advogado e cliente.

Um dos temas mais controversos no debate sobre o dever de comunicação imposto aos advogados em matéria de prevenção à lavagem de capitais refere-se ao recebimento de honorários advocatícios provenientes de atividades ilícitas de seus clientes. Essa situação coloca em tensão o direito ao exercício da profissão e à remuneração legítima com a necessidade de impedir que o produto de crimes seja incorporado ao sistema financeiro sob aparência de legalidade.

Na Espanha, o artigo 301 do Código Penal tipifica a lavagem de capitais como crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, inclusive advogados. Embora ainda não haja jurisprudência consolidada sobre a incidência do tipo penal em casos de honorários pagos com recursos ilícitos, a doutrina majoritária e as decisões mais recentes do Tribunal Supremo espanhol têm reconhecido que a mera aquisição, posse ou utilização de valores de origem criminosa, quando o advogado tem ciência dessa ilicitude, configura o delito de lavagem de capitais — abrangendo, portanto, o recebimento de honorários decorrentes de tais recursos.

Entre os países que mais avançaram na discussão sobre a responsabilização de advogados por lavagem de capitais destacam-se os Estados Unidos e a Alemanha. Nos Estados Unidos, o tema foi introduzido pela Laundering Control Act de 1986, que tipificou como crime a realização de transações financeiras superiores a US$ 10 mil quando o agente tem ciência de que os recursos são provenientes de atividade criminosa.

A legislação norte-americana não restringe a incidência do tipo penal à esfera financeira, alcançando inclusive a advocacia, embora estabeleça uma exceção para transações vinculadas à garantia do direito de defesa, assegurado pela Sexta Emenda da Constituição.

Ainda assim, a Suprema Corte norte-americana consolidou o entendimento de que honorários pagos com recursos ilícitos não integram o âmbito da proteção constitucional. Nos precedentes Caplin & Drysdale v. United States e United States v. Monsanto, a Corte reconheceu a possibilidade de confisco dos honorários advocatícios provenientes de crimes, sem que isso configurasse violação ao direito de defesa.

A jurisprudência de instâncias inferiores segue a mesma orientação. Em U.S. v. Velez (2009, Flórida), por exemplo, um advogado foi condenado por lavagem de capitais após receber honorários pagos com dinheiro oriundo do tráfico de drogas. O tribunal concluiu que, embora a representação legal seja direito fundamental do acusado, tal garantia não autoriza o uso de recursos de origem delituosa para custear a defesa.

Decisões semelhantes, como United States of America v. Walter Lloyd Blair, reafirmam que o exercício da advocacia não pode servir de amparo para a circulação de valores ilícitos, sob pena de se transformar em instrumento de legitimação de atividades criminosas.

Na Alemanha, o debate sobre o enquadramento do advogado no crime de lavagem de capitais tem se desenvolvido de forma particularmente relevante. O § 261 do Código Penal Alemão adota um modelo de taxatividade dos delitos antecedentes, de modo que a configuração da lavagem depende de que os recursos utilizados provenham de crimes expressamente listados na lei.

Assim, o recebimento de honorários com valores oriundos de tais delitos pode caracterizar o crime, pois o legislador busca impedir a circulação de dinheiro ilícito no sistema legal, punindo inclusive transações rotineiras realizadas em benefício de autores de crimes graves.

A jurisprudência alemã, contudo, apresenta posições divergentes. O Oberlandesgericht de Hamburgo (2000) entendeu que o recebimento de honorários com recursos do tráfico de drogas não configuraria lavagem de capitais, sob pena de violar a liberdade profissional e a confiança entre advogado e cliente. Já o Tribunal Supremo (2001) adotou posição oposta, reconhecendo o delito quando o advogado tem ciência da origem ilícita dos valores, afirmando que não há direito ao recebimento do produto de um crime.

O Tribunal Constitucional Alemão, em decisão de 2004, conciliou essas visões ao fixar uma restrição subjetiva: a responsabilização só se aplica se comprovado o conhecimento do advogado sobre a origem criminosa dos recursos, sob pena de violação ao livre exercício da profissão e ao direito de escolha do defensor.

No Brasil, parte da doutrina sustenta que não há crime de lavagem no simples recebimento de honorários, desde que vinculados à defesa ou ao assessoramento jurídico legítimos, em respeito às garantias da ampla defesa e do sigilo profissional. Contudo, admite-se a possibilidade de enquadramento quando o advogado atua em operações financeiras ou imobiliárias em nome do cliente, fora do campo de incidência dessas garantias.

Essa discussão ganha relevo diante do art. 9º, XIV, da Lei 9.613/1998, que sujeita à fiscalização as pessoas que prestem serviços de consultoria, assessoria ou assistência em operações financeiras, demandando a definição de parâmetros normativos claros sobre a incidência da legislação antilavagem à advocacia — especialmente nos casos de honorários provenientes de recursos notoriamente ilícitos.

Recentemente, o STJ, no RHC 194.064/SP, julgado pela 5ª Turma sob relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, anulou colaboração premiada e as provas dela decorrentes sob o fundamento de que haveria relação de patrocínio entre o advogado e o delatado, o que tornaria inviável a utilização de informações obtidas sob sigilo profissional.

Contudo, verificou-se que a colaboração não tratava de fatos abrangidos pelo sigilo cliente-advogado, pois as informações reveladas diziam respeito a condutas criminosas praticadas em conluio, alheias ao objeto da relação profissional. A colaboração não envolveu dados, provas ou comunicações provenientes da atuação legítima do advogado em defesa do cliente, mas sim fatos autônomos e estranhos à confidencialidade inerente à advocacia.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Diante do cenário analisado, torna-se evidente a necessidade de o Brasil adotar previsão normativa expressa que regulamente a possibilidade de responsabilização penal do advogado por lavagem de capitais, em moldes compatíveis com as garantias constitucionais da profissão.

A experiência internacional demonstra que a ausência de parâmetros claros entre o exercício legítimo da advocacia e a participação dolosa em operações de branqueamento de capitais gera zonas de incerteza que favorecem tanto abusos quanto impunidade.

Uma legislação específica permitiria harmonizar a política nacional antilavagem com a proteção do sigilo profissional e do direito de defesa, fixando critérios objetivos de imputação. Esses critérios devem exigir a comprovação do dolo e do conhecimento inequívoco da origem ilícita dos valores, restringindo a punição às hipóteses em que o advogado atue deliberadamente para ocultar ou dissimular bens de origem criminosa.

Assim, o marco legal adequado não representaria uma ameaça à advocacia, mas um instrumento de integridade institucional, reforçando o compromisso da classe com a ética, a transparência e a efetividade no combate à criminalidade econômica.

Generated by Feedzy