Governança regulatória em ciclo completo

Governança regulatória costuma soar como um conceito abstrato. Não deveria. Embora muitas vezes tratada de forma periférica e retórica, experiências recentes mostram que, quando bem cuidada, a governança é um arranjo que conecta planejamento, processo e responsabilidade pública em ciclos claros de decisão, implementação, avaliação e ajuste.

É ela que confere direção, coordena atores, explicita escolhas e sustenta correções de rota, convertendo intenção em resultado. Com essa lente, examinamos a seguir um caso que ajuda a tirar o tema do plano das declarações e colocá-lo no terreno das práticas.

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No último dia 11, participamos de um debate na Agência Reguladora de Transportes do Estado de São Paulo (Artesp) sobre um pacote normativo que reorganiza a participação social e institucional, consolida a agenda regulatória, disciplina a Análise de Impacto Regulatório e institui um ambiente de experimentação para inovação técnica.

O vídeo do encontro está disponível no canal oficial da Artesp no YouTube, e a gravação evidencia a coerência do movimento: previsibilidade, abertura e aprendizado integrados em uma mesma arquitetura de governança.[1]

A Agenda Regulatória publicada cumpre papel que vai muito além de um calendário de intenções. Ao tornar explícitas prioridades e janelas de trabalho, a agência reduz custos de transação, oferece horizonte para contribuições qualificadas e responsabiliza a gestão pela execução do plano.

É uma sinalização valiosa para concessionárias, usuários e órgãos de governo, pois antecipa temas, organiza expectativas e eleva a qualidade do debate público. Na prática, a Agenda funciona como bússola da atuação regulatória, permitindo que atores externos alinhem esforços às trilhas de atuação da agência e transformem a participação em coprodução de soluções. [2]

Em coerência com essa lógica, a Agenda Regulatória da Artesp abre destacando dois pilares metodológicos para a qualidade regulatória: a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e o Ambiente de Inovação Técnica (AIT). A AIR confere método e racionalidade às escolhas, organiza o problema, compara alternativas, estima efeitos e explicita as razões da decisão. Embora tenha nascido de um impulso liberalizante de redução de estoques normativos, amadureceu como ferramenta de boa administração, ancorada em proporcionalidade, transparência e accountability.

No âmbito da Artesp, a Portaria 104/2025 deu contornos próprios à AIR ao integrá-la a um repertório participativo amplo, com proposta normativa externa, reuniões técnicas, tomada de subsídios e consultas públicas, abrindo espaço para a expertise setorial em trilha processual definida.[3]

A finalidade é municiar o corpo técnico com dados, informações e estudos, assegurando que a seleção de agentes externos seja fundamentada e registrada nos relatórios. A liberdade metodológica é assegurada, desde que a abordagem escolhida seja justificada no relatório preliminar e no relatório final.

É nesse ponto que o AIT, cuja minuta está em consulta pública, acrescenta um diferencial decisivo.[4] Ao oferecer um espaço de teste controlado, transforma hipóteses em dados observáveis e dá lastro empírico à AIR, que passa a decidir com evidências.

A norma proposta cria um campo seguro para experimentar soluções, medir resultados e documentar aprendizados, permitindo iterar e calibrar políticas antes da escalabilidade. Admitir o erro em ambiente controlado não é leniência, mas desenho institucional inteligente: protege o usuário, reduz assimetria informacional entre regulador e regulado e aproxima a decisão regulatória do modo como o serviço público funciona na prática.

Concessões, por sua própria natureza, já são ambientes de inovação. Mesmo sem ruptura tecnológica evidente, evoluem métodos, preferências do usuário e padrões de desempenho, exigindo adaptação contínua. Ao publicar a Agenda, tratar a AIR como eixo e regulamentar o AIT, a ARTESP organiza essa dinâmica em um tripé que dá previsibilidade, qualifica escolhas e produz evidência. Na prática, o AIT gera dados em contexto real que alimentam a AIR e conferem maior robustez às decisões, com menos incerteza e melhor prestação de serviços ao usuário.

A execução, contudo, demanda, pelo menos, três cuidados. Em primeiro lugar, é recomendável objetivar o caso a caso dos pilotos com balizas mínimas sobre duração típica de ciclos, critérios para encerrar, pivotar ou escalar e requisitos de evidência para mudança de status. Essa objetivação evita pilotos eternizados ou amadurecimentos apressados.

Em segundo lugar, a isonomia precisa ser assegurada desde a seleção das propostas até a divulgação dos resultados, com regras claras de elegibilidade, governança de conflitos e transparência ativa das análises, o que reduz litigiosidade futura e reforça legitimidade social.

Em terceiro lugar, cada teste deveria produzir um relatório público de aprendizagem, conectando a AIR ex ante à avaliação ex post, com método, dados, indicadores e apreciação de custo-benefício, de modo a formar memória institucional replicável entre contratos e setores.

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Nada disso substitui o juízo decisório que toda política pública encerra. Nem tudo é mensurável e nem toda escolha se limita ao cálculo. O mérito do desenho está em restringir o espaço do voluntarismo e ampliar o da justificativa baseada em evidências, sem paralisar a ação. Ao organizar a participação, a agência abre a arena para o contraditório técnico.

Ao disciplinar a AIR, oferece método para decidir. Ao instituir o ambiente de teste, entrega evidência para aprender. É uma combinação prudente e corajosa, compatível com o que há de mais moderno em regulação responsiva e por incentivos, que recompensa bom desempenho, corrige desvios com proporcionalidade e cria condições para a inovação florescer sem comprometer a proteção do usuário.

[1] ARTESP. Governança regulatória e ambiente de inovação técnica: debate. [Vídeo]. YouTube, 11 nov. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5rgZEN29L8Q. Acesso em: 12 nov. 2025.

[2] AGÊNCIA REGULADORA DE TRANSPORTES DO ESTADO DE SÃO PAULO (ARTESP). Agenda regulatória. São Paulo: ARTESP, [s.d.]. Disponível em: https://www.artesp.sp.gov.br/artesp/transparencia/participacao_social/agenda_regulatoria. Acesso em: 12 nov. 2025.

[3] SÃO PAULO (Estado). Agência Reguladora de Transportes do Estado de São Paulo (ARTESP). Portaria ARTESP nº 104, de 7 ago. 2025. São Paulo: ARTESP, 2025. Disponível em: <https://www.artesp.sp.gov.br/artesp/institucional/legislacao/>. Acesso em: 12 nov. 2025.

[4] Está atualmente aberta, entre 28/10/2025 e 17/11/2025, a Consulta Pública nº 013/2025, com o objetivo de colher contribuições para o aprimoramento da Minuta da Portaria, que disciplina o Ambiente de Inovação Técnica no âmbito da ARTESP.

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