Introdução: pluralismo político e limites da maioria
A Constituição de 1988 redesenhou o sistema político brasileiro sob a lógica de uma democracia pluralista, fundada na coexistência de múltiplas identidades políticas, projetos ideológicos e vocações partidárias.
O texto constitucional não se esgota na consagração da vontade da maioria e, ainda, que não trate expressamente da atuação da oposição, exige um ambiente discursivo marcado pelo pluralismo, onde o dissenso é institucionalmente protegido, e a oposição desempenha papel imprescindível na fiscalização e na articulação de alternativas de poder.
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Ainda que sem fazer menção expressa ao direito de oposição política, o arranjo normativo brasileiro revela disposições constitucionais que assentam sua previsão e preservação, como se observa do artigo 89 que prevê como integrantes do Conselho da República (órgão superior de consulta do presidente da República), os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e do Senado[1]. Ao resguardar às minorias assento no órgão superior de consulta do presidente da República, se infere que o direito de ser oposição e de exercer oposição ao governo é tutelado pela Constituição Federal.
A concepção aqui exposta harmoniza-se com a formulação de Lilian Emerique, segundo a qual o direito de oposição deve ser compreendido como um direito fundamental de natureza estruturante, que se materializa a partir de uma arquitetura procedimental e substancial típica do Estado democrático. Tal direito repousa sobre os pilares da cidadania e do pluralismo político, abarcando a diversidade de interesses, posicionamentos partidários e identidades coletivas existentes na sociedade, ainda que não esteja expressamente positivado de forma literal no texto constitucional ou infralegal[2]”.
Considerando o exercício da oposição política um direito fundamental, se observa no julgamento da ADI 7649 que trata de norma regimental da Assembleia Legislativa do Maranhão a compreensão do Supremo de que deve ser observado como parâmetro de constitucionalidade o núcleo essencial do direito ao funcionamento parlamentar para a qualidade dos trabalhos legislativos e, consequentemente, para a caracterização de uma democracia de alta intensidade, na qual os partidos efetivamente traduzem a vontade popular.
Oposição política como categoria jurídico-constitucional
Como apontado, embora não expressamente positivada como “instituto da oposição”, a Constituição protege o fenômeno oposicionista de modo difuso e estrutural. O pluralismo político é fundamento da República (art. 1º, V). O funcionamento parlamentar dos partidos (art. 17, IV) é direito constitucional. E o art. 89 inclui, dentre os membros do Conselho da República — órgão superior de consulta do presidente da República — os líderes da maioria e da minoria no Congresso Nacional.
Esse dispositivo reconhece, assim, que a oposição tem função constitucional: deve ter voz institucional no centro de decisões estratégicas do Estado. Se a minoria integra o órgão consultivo presidencial, então o sistema constitucional incorpora a oposição como sujeito institucional e não como circunstância política eventual. A norma, nessa medida, é de replicação necessária nas outras esferas.
Para o exercício desse direito constitucional fundamental de oposição ao governo, é necessário que o arranjo normativo disponha de garantias suficientes à sua existência de modo a possibilitar que todas as ideias políticas presentes na sociedade possam estar também presentes no debate eleitoral[3].
É de Habermas a crítica ao modelo republicano no ponto aduzindo que “ele é muito idealista e torna o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum. Porém, a política não consiste somente, e nem primariamente, de questões sobre a autocompreensão ética. O erro reside em um estreitamento ético do discurso político[4]”.
A opção constitucional revela que a oposição política não é elemento acidental, mas componente orgânico da estrutura democrática brasileira. A integração das minorias nas instâncias consultivas mais elevadas, reconhece que o contraditório político não é apenas tolerado, mas necessário ao bom funcionamento do Estado e do parlamento.
A partir desse reconhecimento estrutural, impõe-se a segunda conclusão: para que a oposição exerça o direito constitucional fundamental de fiscalizar, contestar e propor alternativas ao governo, o arranjo normativo deve assegurar condições materiais ao seu funcionamento. Não basta reconhecer a oposição no plano simbólico; é indispensável que o sistema jurídico ofereça mecanismos que garantam sua existência institucional e sua capacidade de expressão efetiva, permitindo que todas as ideias políticas relevantes na sociedade encontrem espaço no debate eleitoral e na arena pública.
Isso implica assegurar prerrogativas regimentais mínimas, vias de articulação entre partidos minoritários, direito de expressão no processo legislativo e instrumentos procedimentais que impeçam a captura institucional pela maioria. Representatividade importa e é preciso assegurá-la. O arranjo normativo, portanto, deve permitir que a oposição exista não apenas formalmente, mas de maneira substantiva e funcional.
A democracia delineada por Dahl prevê expressamente essa possibilidade de oposição política e utiliza como sinônimos os termos liberalização, competição política, política competitiva, contestação pública e oposição pública[5]. E, nesta medida, essa dimensão normativa encontra fundamento sólido na teoria democrática contemporânea, que aponta a oposição como condição ontológica da democracia.
Para Robert Dahl, a democracia exige um regime de participação inclusiva e contestação pública [elementos identificados por Robert Dahl[6] como mecanismo de aferição da qualificação do processo democrático] no qual diferentes grupos disputam influência, vocalizam preferências e confrontam políticas governamentais sem sofrer supressão institucional.
A oposição é exatamente a ferramenta dessa contestação: sua eliminação transforma a participação política em ritual vazio. A garantia institucional ao exercício da oposição conflui, ainda, para a conceituação de democracia de Adam Przeworski que prescreve a necessidade de uma incerteza institucionalizada[7] quanto aos resultados do processo político competitivo[8].
A alternância de poder deve ser sempre possível. Se maiorias manipulam regras regimentais para enfraquecer partidos minoritários e inviabilizar sua articulação — como ao dificultar a criação de blocos parlamentares —, reduzem a competitividade do sistema e corroem a incerteza o que pode atingir a representação autêntica da vontade popular e o próprio processo democrático.
Daí porque a oposição política deve ser reconhecida como categoria jurídico-constitucional decorrente da própria arquitetura da Constituição brasileira que a pressupõe como elemento estruturante do regime democrático e salvaguarda do próprio núcleo essencial da democracia constitucional. Qualquer arranjo normativo que, sob o pretexto de racionalização organizacional, produza supressão material da atuação oposicionista, viola simultaneamente o pluralismo político, o funcionamento parlamentar e a lógica deliberativa que sustenta a legitimidade das instituições republicanas.
A ADI 7649/MA: racionalidade regimental e risco de erosão da oposição
O Supremo se deparou com o tema no julgamento da ADI 7649/MA proposta pelo PC do B contra dispositivos do Regimento Interno da Assembleia Legislativa do Maranhão que majoraram o quórum de formação de blocos parlamentares, impediram partidos com menos de 1/10 da Casa de exercer liderança e proibiram rearranjos blocais no decorrer da sessão legislativa.
Sob a alegação de que “de acordo com as normas ora impugnadas, somente uma única bancada partidária, a do Partido Socialista Brasileiro – PSB, permanece, casuística e discriminatoriamente com esse direito”, a inicial sustenta que restaria violado o que já decidido pelo Supremo no julgamento da ADI 1351 quanto à adoção de percentual intransponível aos partidos políticos pequenos e médios, favorecendo os partidos com maior representatividade parlamentar, com recursos do fundo partidário e tempo de propaganda partidária e eleitoral.
O núcleo essencial do funcionamento parlamentar como parâmetro de constitucionalidade e condição de uma democracia de alta intensidade
Ainda que decidindo pela improcedência da ação direta, o Supremo Tribunal Federal assentou, inicialmente, a relevância do bom funcionamento parlamentar e do respeito à autonomia partidária para a qualidade dos trabalhos legislativos e, consequentemente, para a caracterização de uma democracia de alta intensidade, na qual os partidos efetivamente traduzem a vontade popular.
A conclusão pela improcedência da ação decorre da compreensão de que “as lideranças e blocos parlamentares são instrumentos de racionalização dos trabalhos legislativos em bancadas maiores, para que a dispersão de entendimentos (resultado, exatamente, da maior quantidade de parlamentares) não acabe por inviabilizar a formação dos consensos necessários à deliberação parlamentar”. E da constatação de que o conteúdo dos dispositivos não implica em restrição ao funcionamento parlamentar dos partidos políticos representados.
O critério de desempenho adotado, na dimensão posta, não viola a razoabilidade e tampouco inviabiliza a representação partidária.
Não se desconhece que o Supremo tem assente em jurisprudência a compreensão pela constitucionalidade da utilização do desempenho eleitoral como fator de discrímen entre as agremiações partidárias (ADI 5.577, Rel. Min. Rosa Weber, Plenário, DJe 19.12.2017).
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 7649/MA, postas essas premissas, evidencia a necessidade de compreender que a autonomia regimental das Casas Legislativas, ainda que ampla e sem necessidade de replicação constitucionalmente imposta, encontra limite estrutural no núcleo essencial do funcionamento parlamentar.
Ainda que implicitamente, se infere o STF concluiu que normas regimentais que esvaziem a capacidade de articulação da oposição violam a Constituição e atingem o núcleo essencial da democracia.
Nesse sentido, o STF sinaliza que o funcionamento parlamentar não é um fim em si mesmo, mas um meio de garantir a autenticidade da representação política, “na qual os partidos efetivamente traduzem a vontade popular”. Quando partidos, inclusive os de menor expressão eleitoral, dispõem de instrumentos estruturais para ampliar sua influência, a Casa Legislativa aproxima-se do ideal de democracia responsiva: os partidos passam a traduzir a vontade popular de modo mais completo e preciso, especialmente na dimensão da fiscalização e do controle.
Assim, a preservação do núcleo essencial do funcionamento parlamentar atua como garantia estruturante da democracia, pois impede que a racionalização interna se transforme em mecanismo de captura majoritária. Democracias de alta intensidade não são apenas regimes em que votos são contados; são sistemas em que vozes são ouvidas, confrontadas e institucionalmente consideradas, e em que a oposição atua como vértice indispensável da arquitetura republicana.
A decisão do STF, ao reafirmar esse parâmetro, preserva o equilíbrio entre governabilidade e pluralismo, entre racionalização e contestação, entre maiorias circunstanciais e direitos das minorias permanentes. É nessa harmonia que reside a possibilidade de um Parlamento que não apenas legisla, mas reflete a complexa heterogeneidade da sociedade brasileira, realizando plenamente a função democrática que a Constituição de 1988 lhe atribui.
Conclusão
A ADI 7649/MA é um caso que revela como normas internas de Casas Legislativas podem impactar profundamente o equilíbrio democrático. Embora o STF tenha reconhecido a constitucionalidade das regras impugnadas, o caso evidencia os limites da racionalização interna quando confrontada com o núcleo essencial do funcionamento parlamentar.
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Nesse núcleo fundamental, como demonstrado, deve estar a proteção da oposição política como categoria constitucional implícita e como valor democrático essencial. Preservar a oposição, é de se destacar, não significa apenas assegurar voz às minorias: significa garantir que o sistema político permaneça aberto, contestável e permeável à alternância, permitindo que a vontade popular se manifeste em toda sua complexidade.
É nessa convergência entre Constituição e teoria democrática que a oposição se revela como categoria jurídico-constitucional essencial, sobre a qual repousa a própria durabilidade e autenticidade da democracia brasileira.
[1] BRASIL. Constituição Federal: Art. 89. O Conselho da República é órgão superior de consulta do Presidente da República, e dele participam:
I – o Vice-Presidente da República;
II – o Presidente da Câmara dos Deputados;
III – o Presidente do Senado Federal;
IV – os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados;
V – os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal;
VI – o Ministro da Justiça;
VII – seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução.
[2] ““O direito de oposição é um direito fundamental, assentado e concretizado sobre uma estruturação procedimental e substancial do Estado democrático, fundado na cidadania e no pluralismo político, reconhecedor da multiplicidade de interesses, posições partidárias e identidades de grupos, mesmo que tal direito não seja expresso diretamente na ordem constitucional ou legal”, in EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. O direito de oposição política no estado democrático de direito. In: XV ENCONTRO PREPARATÓRIO PARA O CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 2006, Recife. Anais… Recife: CONPEDI, 2006. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/recife/politica_lilian_emerique.pdf. Acesso em 25.05.2023.
[3] SANCHEZ MUÑOZ, Oscar. La Igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, 2007, p. 4.
[4] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução Denilson Luís Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 407.
[5] DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. 1 ed. 3 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015, p. 213-214.
[6] DAHL, Robert Alan. Poliarquia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
[7] “Democratização é o processo de submeter todos os interesses à competição da incerteza institucionalizada”. PRZEWORSKI, Adam. Democracy and the limits of self-government. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
[8] “a democracia pode ser estabelecida somente se existirem instituições que tornem improváveis as conseqüências — decorrentes do processo político competitivo — altamente adversas aos interesses de qualquer agente específico, dada a distribuição de recursos econômicos, ideológicos, organizacionais, etc”. PRZEWORSKI, Adam. Ama a incerteza e serás democrático. Tradução de Roseli Martins Coelho. Novos Estudos Cebrap, São Paulo. n.º 9, p. 36- 46, jul. 84.