O PL 4675/2025 acompanha tendência inaugurada pelo Digital Markets Act na Europa e seguida por outras jurisdições ao redor do mundo de dotar as autoridades de defesa da concorrência de estrutura e procedimentos condizentes com os desafios postos pela economia digital.
Parte significante da comunidade antitruste já se convenceu que o instrumental atualmente existente não consegue preservar a competição no ambiente digital, remanescendo apenas a discussão sobre como devem se dar os necessários ajustes na legislação.
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Algumas economias mais desenvolvidas do mundo possuem legislação semelhante ao proposto pelo PL. A OCDE, inclusive, tem acompanhado e monitorado as iniciativas propostas pelos países pertencentes ao G7 para lidar com esse tema, tendo constituído inventário específico para tanto.
Em linhas gerais, as mudanças se concretizam por um agir concorrencial regulatório ex ante, destinado somente a alguns agentes econômicos com grande poder de intermediação (regulação assimétrica – vide art. 47-C), buscando preservar o processo competitivo. Esses grandes agentes, conhecidos como controladores de acesso, recebem a nomenclatura no PL de agentes econômicos de relevância sistêmica, e somente a eles são destinadas a observância de obrigações especiais nos ecossistemas em que atuam para preservação da competição.
O Brasil passa a seguir, portanto, boa parte da convergência mundial com o PL apresentado, dando um passo à frente para modificar atributos eventuais, reativos e residuais de aplicação da lei antitruste. A partir da aprovação do PL, haverá uma nova forma de atuação do Cade nos mercados digitais.
O art. 14-B prevê que o novo órgão a ser criado, a Superintendência de Mercados Digitais (SMD), “acompanhará permanentemente as atividades e as práticas comerciais de agentes que atuem em mercados digitais, além de requisitar deles as informações e os documentos necessários, assegurado o sigilo legal, quando for o caso.” Não se trata mais de julgar ex post, mas agir regulatoriamente ex ante.
Contenção de disputas ideológicas
O projeto apresentado não deve ter sua tramitação prejudicada por disputas ideológicas. A defesa da concorrência, como se sabe, é um valor suprapartidário, capaz de regular os comportamentos de ofertantes e demandantes ao conferir espaços para escolhas livres e auto informadas. Para que isso seja possível, é preciso que o poder de mercado detido por alguns agentes seja contido. Reside aí o grande mérito do PL ao prescrever os objetivos de: I – redução de barreiras à entrada; II – proteção do processo competitivo; e III – promoção da liberdade de escolha.”
O Cade passará a ter objetivos claros para orientar sua atuação, balizando o agir do órgão com as novas atribuições cometidas à SMD (art. 5º, IV), a nova unidade criada na estrutura administrativa da autarquia.
Algumas competências acrescidas ao Cade fazem aproximá-lo da governança das agências reguladoras, como, por exemplo, a obrigação de a SMD publicar sua agenda prioritária de atuação, nos termos do art. 14-B, IX, prevendo, inclusive, oitiva do ministério.
Há proximidade com o dever de publicação da agenda regulatória das agências reguladoras, conforme art. 21 da Lei 13.848/19. Fica para uma outra oportunidade a discussão de diversos outros temas semelhantes, cabendo destacar que as mudanças propostas impactam substancialmente no agir tradicional do Cade como órgão judicante.
Mudança no desenho institucional de análise de atos de concentração
Algumas melhorias ao PL já podem ser sinalizadas. Ao dispor sobre as competências da SMD, resta previsto que os atos de concentração serão analisados pela SG, ainda que o ato envolva agentes econômicos de relevância sistêmica em mercados digitais (§3º do art. 14-B).
Essa escolha não nos parece a mais acertada. Com a instrução e o monitoramento dos processos pela SMD, esta Superintendência passará a ter mais conhecimento do que a SG sobre as particularidades do ecossistema no qual atua o agente econômico de relevância sistêmica, passando a deter, portanto, melhores condições para se manifestar sobre os atos de concentração apresentados. Deve se destacar que o próprio PL previu que a SMD desenvolverá estudos e pesquisas no âmbito dos mercados digitais, concebendo-a como uma estrutura fortemente especializada no assunto (art. 14-B, VII).
Não obstante, caso a repartição de competência remanesça tal como prevista, sugere-se acréscimo de determinação de oitiva da SMD nos processos de ato de concentração envolvendo agente econômico de relevância sistêmica, mantendo-se os prazos de apreciação de tais atos.
Procedimental não menciona a possibilidade de concessão de medida preventiva e traz redação dúbia sobre penalidades
No desenho procedimental do PL, existirão dois processos: (i) o processo de designação de agente econômico de relevância sistêmica em mercados digitais; e (ii) processo administrativo para determinação de obrigações especiais a agente econômico de relevância sistêmica em mercados digitais. O art. 87-C, §1º prevê que ambos os processos poderão ter tramitação de forma concomitante.
Nos dois processos, há instrução pela SMD e deliberação pelo tribunal do Cade. O art. 87-E, parágrafo único, prevê que a duração da instrução desses processos é de no máximo 180 dias na SMD e 120 dias no tribunal (art. 87-F, §1º)
A instrução e deliberação em 300 dias parece compatível com o tempo exigido de pronta resposta pelos mercados digitais. Ocorre que, não obstante essa previsão temporal, é relevante restar expressa a possibilidade de concessão de medidas preventivas pela SMD e o tribunal. A norma é silente em relação ao tema, não parecendo haver incompatibilidade de concessão dessas medidas com a sistemática de audiência pública trazida pelo PL. O caso da Apple, recentemente deliberado pelo Cade, teve audiência pública e concessão de medida preventiva pela SG, mantida pelo tribunal (Inquérito Administrativo 08700.009531/2022-04).
Outro tema sobre o procedimental que se sugere aperfeiçoamento é a redação dada pelo art. 47-G. A redação ficou dúbia. O que a norma quis dizer é que as penalidades pelo descumprimento das obrigações especiais são as mesmas penalidades já previstas em lei para as infrações à ordem econômica.
Evitar complicações desnecessárias
Por fim, vale lembrar que o PL é eminentemente revolucionário. A partir da sua conversão em lei, poderá se falar em uma nova etapa do antitruste. Ao longo da história do antitruste, nunca houve a regulação concorrencial que ora se cogita. O Cade terá que se reinventar em relação aos mercados digitais.
Nessa efervescência, é preciso cuidado com algumas previsões normativas. O §1º do art. 87-B dispõe que a imposição de obrigações especiais será precedida de justificativa econômica da decisão.
Essa redação pode trazer disputas intermináveis sobre a consistência das obrigações especiais segundo distintos referenciais econômicos. O art. 47-E explicita algumas obrigações especiais que poderão ser aplicadas pelo Cade. A discussão sobre aplicação dessas medidas não deve recair, portanto, sobre justificativas econômicas. O que deve balizar o cabimento das obrigações especiais é o atendimento aos objetivos previstos na norma: I – redução de barreiras à entrada; II – proteção do processo competitivo; e III – promoção da liberdade de escolha.” (art. 47-B).
Por certo que ao discutir a aderência a esses objetivos, a discussão trará elementos econômicos, mas esses elementos se somarão a fundamentos jurídicos que permitirão, ao fim e ao cabo, constatar a aderência das obrigações impostas aos fins reclamados pela lei. Propõe-se, portanto, como redação para esse dispositivo que: “§ 1º A imposição de obrigações especiais será precedida de justificativa que guarde adequação aos objetivos descritos no art. 47-B”.
Conclusão
O PL 4675 é um grande avanço e inicia uma valorosa interação com o Congresso Nacional, voltado a combater o problema estrutural de excessivo poder de mercado detido por grandes agentes econômicos nos mercados digitais.
Deve-se lembrar que a existência de poder de mercado distorce estruturalmente as condições de funcionamento desejadas a uma economia que se queira atribuir contornos mais includentes e com ganhos compartilhados entre todos. Uma economia mais concentrada reflete, no fundo, uma sociedade menos plural e menos diversificada, vilipendiando a liberdade das pessoas em diversos aspectos e concentrando riquezas.
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A presença de poder de mercado impede que os consumidores possam decidir pelas melhores escolhas, dificulta o acesso de novos entrantes ao mercado, distorce elementos informacionais contidos nos preços, impacta nas próprias condições do processo de valoração dos bens e serviços oferecidos e diminui a liberdade de pequenas e médias empresas que negociam com grandes firmas.
Este texto trouxe breves contribuições de aperfeiçoamento ao PL 4675/2025 sem deixar de reconhecer a importância da iniciativa de sua edição. O rumo tortuoso que o PL 2768/2022 trazia foi corrigido[1] e há agora uma preciosa janela de oportunidade para atualização da Lei 12.529/11. Passemos a acompanhar os aprimoramentos pelo Parlamento.
[1]O referido PL se valia de um referencial de regulação de infraestrutura essencial (public utility) e atribuía a competência para o exercício dessa função à ANATEL. Para aprofundamento da discussão de descabimento dessa escolha: SANTOS, Humberto Cunha dos. Mercado digital e direito da concorrência: o Digital Markets Act. São Paulo: Thomson Reuters, 2024, p. 263 a 281.