O ano de 2026 apresenta-se, novamente, como um cenário político difícil, em especial para o Legislativo. Nos últimos anos, pudemos observar uma crescente apreensão acerca da necessidade de melhor organização interna dos partidos, em especial nos momentos pré-eleição.
A Emenda Constitucional 97/2017 introduziu alterações substanciais no sistema político-eleitoral, ao proibir coligações nas eleições proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais) e ao instituir a cláusula de desempenho (barreira) para acesso ao Fundo Partidário, às funções legislativas para as bancadas e ao tempo de propaganda gratuita.
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O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 5617 e 5630 (2019), declarou constitucionais essas mudanças, ressaltando que a racionalização do sistema partidário e o fortalecimento das agremiações políticas são compatíveis com a Constituição (art. 17). A intenção elementar do legislador foi induzir maior governabilidade com a redução da fragmentação partidária e, por consequência, esperaria que fosse induzida a uma maior coerência ideológica junto a uma consolidação partidos com enraizamento social.
O objetivo central da reforma demonstrou-se bem sucedida. O impacto da extinção das coligações proporcionais junto à imposição de uma cláusula de desempenho de maneira gradual já resultou numa diminuição significativa do número de partidos com representação nos parlamentos federal, estaduais e municipais. Para se ter ideia, no âmbito da Câmara dos Deputados, em 2015 o número efetivo de partidos parlamentares estava por volta de 15, enquanto em 2025 encontra-se em 9.57.
Entretanto, é forçoso reconhecer que a desfragmentação do cenário partidário não significa trazer maior racionalidade e representatividade na gestão partidária, bem como das estratégias eleitorais. Após a chamada minirreforma eleitoral de 2017 em conjunto da reforma de 2021 – com a instituição das federações e medidas mais duras para tornar efetiva a representatividade feminina e negra –, os partidos, especialmente na esfera municipal, foram submetidos a intensa pressão para se estruturarem como agremiações competitivas, pois uma pequena falha ou descompromisso pode resultar na total ausência de representantes eleitos, afetando diretamente as perspectivas eleitorais na esfera federal culminando no quantitativo agremiado pela legenda através do Fundo Partidário.
A prática política, porém, revelou um quadro diverso: improvisação organizacional, deficiências na gestão intrapartidária e ausência de estratégias claras para recrutamento, seleção e acompanhamento de candidaturas.
O município de Araucária, na região metropolitana de Curitiba, ilustra esse descompasso de forma paradigmática. Ali, dois vereadores perderam seus mandatos após a Justiça Eleitoral reconhecer fraude no preenchimento da cota de gênero (art. 10, §3º, Código Eleitoral), visto que a agremiação registrou um homem cisgênero como se fosse mulher transgênero, em evidente burla ao sistema de cotas.
O Tribunal Superior Eleitoral, em vários precedentes, como o AgR-REspe 0600651-94/BA, 2022, tem reafirmado que a fraude à cota de gênero implica a cassação integral da chapa. Tal conduta, além de configurar fraude eleitoral típica, constitui uma afronta à própria essência da representação política (art. 14, caput, CRFB), além de banalizar uma pauta sensível da luta trans no Brasil. Trata-se de um episódio que alia ilegalidade formal à degradação simbólica da representatividade democrática.
Em Arapoti (PR), caso semelhante ocorreu: a Justiça Eleitoral declarou a nulidade das eleições dos candidatos Edivaldo Almeida Pontes e Jean Carlos Klichowski, ambos eleitos pelo partido Solidariedade nas eleições municipais de 2024. A decisão foi motivada pela constatação de fraude à cota de gênero. A sentença foi proferida pela juíza Gabriela Rodrigues de Paula em 7 de dezembro de 2024.
Para além desses dois casos, a falha na gestão intrapartidária é evidenciada por outros exemplos. Em Colombo, na região metropolitana de Curitiba, o ex-vereador Anderson Prego (PT) foi o candidato mais votado para o legislativo municipal em 2024, com 2.950 votos (74% dos votos de sua lista), tornando-se o vereador negro mais votado da história local. Apesar disso, ele não conseguiu se eleger porque seu partido não alcançou o coeficiente eleitoral exigido.
Caso semelhante é o do secretário de Administração do Paraná, Luizão Goulart (Solidariedade), que obteve 96.543 votos em 2022 (71% dos votos de sua lista). No entanto, o segundo colocado na mesma lista fez apenas 9.820 votos, demonstrando a fragilidade e a baixa competitividade do grupo. Luizão superou em número de votos mais de 50% dos deputados eleitos, mas ficou de fora da Câmara pelo fato de o partido não ter atingido o mínimo necessário para conquistar uma cadeira.
Não houve fraude ou ilegalidade nos casos, mas sim inaptidão estratégica do partido em compor nominatas competitivas. O resultado concreto foi a exclusão de um representante legitimamente consagrado pelas urnas, revelando como a incapacidade de formação de quadros compromete a efetividade da representação política.
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O panorama revela que, se por um lado a minirreforma buscou racionalizar o sistema partidário, por outro, trouxe à tona fragilidades históricas das agremiações políticas brasileiras, sobretudo no nível municipal. Como bem aponta José Jairo Gomes, ainda persiste a lógica dos partidos como “siglas de aluguel”, meramente cartoriais, sem densidade programática e dependentes do personalismo.
A gestão empresarial moderna, já consolidada no setor privado e permeando o terceiro setor, precisa ser estendida aos partidos políticos. Princípios organizacionais e administrativos, além de mecanismos de análise para seleção e recrutamento, são ferramentas úteis e comprovadamente eficazes que devem ser incorporadas ao cotidiano partidário.
Não é mais possível conceber um partido político como uma mera sigla transitória, eleitoreira por essência e construída com a mais pura ausência de compromisso. Pelo contrário, o partido deve ser estruturado de forma que seja mais importante que as pessoas, afastando o personalismo e instituindo um processo político com maior enraizamento social.
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