Desde o referendo da medida cautelar na ADI 7633, ficou claro o caminho que o STF pretende seguir para fixar a interpretação quanto ao alcance do art. 113 do ADCT, incluído pela EC 95/2016. Embora a literalidade do dispositivo constitucional se limite a estabelecer que “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”, o STF fixou que o art. 113 determina, além disso, uma “diretriz de sustentabilidade orçamentária” que traria para o legislador uma obrigação de “controle do crescimento das despesas”.
Esse “imperativo” faria parte do que o ministro relator Cristiano Zanin chamou de devido processo legislativo. Na prática, essa interpretação implica na exigência de que as proposições legislativas sejam acompanhadas não só da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, mas também da indicação da origem dos recursos para o seu custeio ou de medidas de compensação para fazer face às despesas ou renúncias de receita. Essa era precisamente a controvérsia da prorrogação da “desoneração da folha” que ensejou a ADI 7633.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Em outro lugar, já se discordou dessa interpretação. Não é o caso de revisitar os argumentos aqui, mas sim de responder à pergunta do título: O art. 113 do ADCT é aplicável a atos normativos do Poder Executivo?.
É sabido que a norma constitucional usa a expressão “proposição legislativa”, sugerindo que a exigência constitucional incide sobre atos com status de lei. Então, obviamente, não abarcaria as emendas constitucionais, nem os atos infralegais. Mas a questão é: faz sentido que fiquem de fora da responsabilidade orçamentária atos normativos como decretos e portarias, por estes não fazerem parte do rol de dispositivos constantes do art. 59 da CF?
Antes de responder, convém um resgate dos entendimentos do TCU.
Em 2019, respondendo a consulta formulada pelo ministro da Fazenda sobre os procedimentos a serem adotados no caso de medidas legislativas aprovadas sem observância dos requisitos previstos em normas orçamentárias e financeiras, o TCU se manifestou por intermédio do Acórdão 1.907/2019-TCU-Plenário, de relatoria do ministro Raimundo Carreiro, consignando que “(…) medidas legislativas que forem aprovadas sem a devida adequação orçamentária e financeira, e em inobservância ao que determina a legislação vigente, especialmente o art. 167 da Constituição Federal, o art. 113 do ADCT, os arts. 15, 16 e 17 da LRF, e os dispositivos pertinentes da LDO em vigor, somente podem ser aplicadas se forem satisfeitos os requisitos previstos na citada legislação” (p. 31).
Com isso, o TCU chamou o Poder Executivo à responsabilidade orçamentária no momento da aplicar leis de que decorram renúncia de receita sem observância dos requisitos exigidos pela legislação. Também é obrigação do administrador viabilizar a observância da normativa em referência.
Nas palavras usadas no Acórdão 1.437/2020-TCU-Plenário, de relatoria do ministro Bruno Dantas: “(…) o gestor público não pode se furtar de cumprir a legislação sob argumento de que a medida legislativa aprovada não carreava atendimento aos requisitos legais. Isso significa que o administrador deve assumir o ônus de implementar as lacunas de requisitos fiscais de eficácia, uma vez que as prescrições constitucionais e da LRF se dirigem a todos os que manejam recursos públicos, e não apenas ao legislador” (p. 12).
Nada obstante, nesse acórdão, entendeu-se pela não aplicação do art. 113 do ADCT para a concessão dos incentivos fiscais por meio de portarias e decretos, uma vez que o dispositivo constitucional trata de condição advinda de “proposição legislativa”, ou seja, aquelas elencadas no art. 59 da CF.
A despeito disso, concluiu-se, na decisão, que as renúncias de receitas por ato do Poder Executivo se sujeitam ao art. 14 da LRF. É dizer, a impossibilidade de se aplicar aos atos do Poder Executivo as exigências contidas no art. 113 do ADCT não retira a obrigação de que a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita seja acompanhada de estimativa de impacto financeiro-orçamentário, uma vez que permanece a incidência do art. 14 da LRF, consideradas as exceções do seu § 3º, pelo qual o referido dispositivo legal não se aplica às alterações das alíquotas dos impostos sobre a importação, sobre a exportação, sobre produtos industrializados e sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (II, IE, IPI e IOF).
Ao entender que não se aplica o art. 113 do ADCT, mas somente o art. 14 da LRF, o TCU dispensou da estimativa do impacto orçamentário e financeiro os impostos tradicionalmente classificados como extrafiscais, cujas alíquotas podem ser alteradas por meio de decreto ou portaria até o limite fixado na lei. O art. 113 do ADCT não traz essa exceção. Assim, os Decretos nºs 9.897/2019 e 9.971/2019, que alteraram alíquotas de IPI, e as Portarias-ME nºs 559/2019 e 601/2019, que alteraram os limites de isenção do II para viajantes, não precisaram se submeter às exigências de responsabilidade orçamentária.
Esse entendimento, entretanto, acabou sendo contrariado pelo Acórdão 2.832/2020-TCU-Plenário, que concluiu pela aplicação do art. 113 do ADCT aos atos do Executivo que geram renúncia de receita, divergindo de uma interpretação estritamente limitada a “proposições legislativas”.
De acordo com o entendimento firmado nesse acórdão, “qualquer alteração de despesa obrigatória ou renúncia de receita, independentemente do Poder de onde se origina o ato, exige a estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro, bem como a observância das normas da LRF. Afinal, as normas desse ramo do Direito [o Financeiro] visam proteger e condicionar a atividade financeira do Estado como um todo, e não a de um Poder específico.” (p. 14).
Dessa forma, o TCU estendeu o alcance do já mencionado Acórdão 1.907/2019-TCU-Plenário, de modo que a concessão de incentivos fiscais por atos infralegais, quando caracterizem renúncia de receita, também estariam obrigados às exigências do art. 113 do ADCT. Esse pareceria ser o entendimento correto sobre o alcance desse dispositivo constitucional, se for para manter a coerência com a amplitude da exigência que se vem dando.
O entendimento (de que se aplica somente o art. 14 da LRF aos atos infralegais) libera da estimativa de impacto e de medidas compensatórias os benefícios fiscais relacionados aos impostos regulatórios, cuja função precípua seria a de induzir certas atividades econômicas. Ocorre que essa natureza extrafiscal não é suficiente para a dispensa de obediência às regras que regem a atividade financeira do Estado.
Entretanto, o Acórdão 2.532/2021-TCU-Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo, revisitou o tema, reconsiderando o Acórdão 2.832/2020-TCU-Plenário, para fixar o entendimento de que a expressão “proposição legislativa” deve ser interpretada de forma estrita, referindo-se apenas aos atos elencados no art. 59 da CF, os quais resultam de um processo legislativo formal, deixando de fora decretos e portarias. Como fundamento adicional, mencionou a decisão do STF na ADI 5816, que considerou o art. 113 do ADCT um “requisito adicional para a validade formal de leis que criem despesa ou concedam benefícios fiscais”.
Entretanto, a ADI 5816 não tratou do alcance do art. 113 do ADCT em relação a decretos e portarias, mas sim da sua extensão a todos os entes federativos. O objeto da ação era uma lei de Rondônia que concedia isenção de ICMS sobre as contas de luz, água, telefone e gás de igrejas e templos religiosos. Portanto, a rigor, não daria para extrair da discussão dessa ADI um posicionamento do STF sobre a aplicação ou não do art. 113 do ADCT a atos infralegais do Poder Executivo. Nada foi dito sobre esse ponto.
No Acórdão 2.532/2021-TCU-Plenário, ainda chegou-se a afirmar que “não se mostra razoável depreender que o termo ‘proposições legislativas’ compreenda os ‘atos do Poder Executivo’”. Da mesma forma que o Acórdão 1.437/2020-TCU-Plenário, reiterou a necessidade de que os atos normativos do Poder Executivo sejam alcançados pela LRF.
Como já indicado, a posição adotada no Acórdão 2.832/2020-TCU-Plenário é mais acertada: sustenta que os requisitos do art. 113 do ADCT devem ser aplicados a todos os atos que gerem renúncia de receita, incluindo decretos e portarias do Poder Executivo, sem dispensar da apresentação da estimativa de impacto financeiro e orçamentário as renúncias fiscais no exercício da competência do art. 153, § 1º, da CF.
Mesmo com essa permissão constitucional para a oscilação das alíquotas por decretos e/ou portarias, desde que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, a decisão pela redução das alíquotas não deixa de ser uma renúncia de receita, sobretudo no contexto em que os impostos regulatórios vêm sendo usados para efeitos arrecadatórios, como o governo fez recentemente; portanto, mereceria o mesmo tratamento das demais renúncias.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Menos mal que o próprio TCU adota o entendimento de que o art. 14, § 3º, inciso I, da LRF se limita à competência do art. 153, § 1º, da CF, sem estender a situações, não de diminuição de alíquotas, mas de redução do montante devido por outros instrumentos, alcançando um grupo (ou grupos restritos) de contribuintes, por exemplo, considerando que isso implica se afastar da regulação econômica, e adotar objetivos de promoção do desenvolvimento sob a forma de “gasto tributário” (Acórdão 747/2010-TCU-Plenário).
Então, outros tipos de desonerações que não a alteração de alíquotas do II, IE, IPI e IOF devem seguir o art. 14 da LRF, quando não o próprio art. 150, § 5º, da CF (“Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g”) e, consequentemente, ficar sujeitas ao art. 113 do ADCT. Assim, reduz-se o problemático “duplo padrão” na exigência de estimativa de impacto financeiro e orçamentário.