Insegurança jurídica na era da influência

Segundo estimativas recentes, o Brasil abriga entre 2 milhões e 3,8 milhões de criadores de conteúdo – mais do que o número de médicos e advogados somados (1,9 milhão). Juntos, movimentam uma economia de mais de R$ 20 bilhões por ano e influenciam diretamente o comportamento de 3 em cada 4 consumidores.

É um dos maiores ecossistemas de influência do mundo, que gera milhões de ocupações e se tornou parte estrutural do setor de comunicação, publicidade e cultura, muitas vezes ainda marcadas pela informalidade.

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Contudo, o Estado ainda não estruturou mecanismos adequados para reconhecer e fomentar essa atividade de forma justa. Essa hesitação não é neutra: manifesta-se em projetos de lei vagos, contraditórios e reativos – e é ela que produz, no fundo, a insegurança jurídica que ameaça o setor da criação digital e do trabalho cultural.

Desconfiança como método

Toda atividade legislativa conta uma história, e os projetos de lei sobre o digital, no Brasil, contam uma história de desconfiança.

O estudo “Radar Reglab – Do feed ao plenário”, lançado no último dia 28 de outubro, analisou 88 projetos de lei sobre criadores de conteúdo apresentados no Congresso entre 2015 e 2025. O resultado é um retrato detalhado de uma ambiguidade normativa: o criador de conteúdo é reconhecido em alguns momentos como profissional legítimo, mas majoritariamente é visto como um risco social a ser contido.

Os dados foram coletados a partir dos sites da Câmara e Senado, utilizando técnicas de análise de conteúdo e discurso em um modelo de metodologia aberta e transparente. Vale destacar alguns pontos relevantes do estudo:

Mais de 40% das propostas tentam definir o que é um influenciador, mas as definições são amplas e caberiam, na prática a qualquer usuário de rede social;
Quase um quarto dos projetos prevê restrições de conteúdo a criadores digitais;
Há mais projetos propondo sanções penais a influenciadores do que direitos sociais;
Nos discursos parlamentares, termos ligados a risco, fraude e vício superam amplamente os de profissionalização e relevância social.

O estudo revela uma constante: a tendência de tratar a atividade do influenciador como risco, e não como profissional. É uma espécie de “regulação punitiva da reputação” – um modelo em que o Estado propõe legislar mais por medo do que por compreensão. Nesse sentido, o Guia de Publicidade para Influenciadores Digitais do Conar é uma exceção, que busca reconhecer a atividade, e criar balizas éticas para sua atuação.

Claro que há abusos que precisam ser punidos – mas é difícil imaginar que, em um universo de milhões de profissionais, essas condutas são a regra. E quando o poder público desconfia do agente que quer regular, a lei nasce sob o signo da punição, não do reconhecimento.

Ciclo da reatividade

Enquanto isso, a cada nova polêmica, o Congresso reage com um novo projeto de lei – ora para controlar conteúdos, ora para tributar plataformas, ora para tentar proteger o público. Mas sob o pretexto de organizar a economia digital, o que se produz é esse ciclo de incerteza: normas vagas, conceitos elásticos e uma mensagem implícita de desconfiança em relação a quem cria, comunica e inova.

Este ciclo tem consequências mais amplas do que aparenta, criando o ambiente perfeito para a captura corporativa de debates legislativos. E essa captura pode vir de qualquer lado – do Estado, de conglomerados de mídia ou de plataformas digitais.

PL do Streaming (PL 8889/2017)

É nesse contexto que a discussão sobre influenciadores digitais cruza com o PL 8889/2017, que propõe um marco regulatório para os serviços de streaming audiovisual no Brasil, abrangendo vídeo sob demanda, televisão por internet e compartilhamento de conteúdos audiovisuais.

O projeto estabelece uma cota mínima de 10% de conteúdos brasileiros para provedor de serviço de vídeo sob demanda, além da instituição da contribuição da Condecine, para investimentos em produções nacionais e formação de mão de obra. Os serviços de streaming poderão deduzir até 60% da sua contribuição para investimentos em produções brasileiras, formação de mão de obra e licenciamento de conteúdos nacionais.

O PL ainda traz dispositivos relativos a criadores de conteúdo, para promoção de suas atividades, de maneira inédita. Criador de conteúdo é definido como pessoa física ou jurídica responsável por criar, produzir, publicar, selecionar ou organizar conteúdo audiovisual direcionado a brasileiros, disponibilizado por meio de serviços de compartilhamento de conteúdo audiovisuais, e cujo consumo gere remuneração direta ou indireta pelo provedor do serviço.

Ainda, há determinação explícita de que parte das receitas da Condecine referentes a serviços de streaming possam ser destinadas a “programas e ações voltados ao fomento de projetos para o desenvolvimento, a produção e a difusão de conteúdos brasileiros produzidos por criadores de conteúdo brasileiros”.

Ou seja, o PL, reconhece legalmente a existência de criadores de conteúdo, e destina recursos financeiros para fomentar projetos desses criadores. O projeto tem muitos pontos de crítica e, no tema de influencers, há pontos importantes que poderiam ser melhorados – seja para dar maior segurança jurídica nas definições, seja para também prever a possibilidade de dedução de imposto o investimento em programas de incentivo a influenciadores (algo que estava previsto em versões anteriores do projeto).

Contudo, são também o começo de uma mudança no ambiente regulatório brasileiro, atualmente focado no risco de influenciadores digitais, para um caminho em que essa atividade é promovida de forma ética.

Tecnologias emergentes e o futuro da regulação

Plataformas e criadores de conteúdo são, ao mesmo tempo, símbolos de inovação e de risco. O mesmo Estado que incentiva o empreendedorismo digital é aquele que, por vezes, o descreve como ameaça social. Essa é uma contradição inevitável – e é preciso não a superar, mas aprender a conviver melhor com isso.

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Isso porque a segurança jurídica não depende apenas de mais leis, mas de leis melhores – claras, justas e aplicáveis, construídas com participação pública dos próprios agentes regulados, reconhecendo sua legitimidade na teoria e na prática, e também enfrentando as desigualdades e problemas que atravessam essa atividade.

Essa estabilidade normativa nasce do diálogo entre Estado, mercado e sociedade, e não da reação a crises pontuais. O Brasil já tem mais criadores de conteúdo do que advogados e médicos; falta agora que tenha mais segurança do que desconfiança.

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