A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é uma daquelas instituições que só lembramos quando algo dá errado. Quando um produto é retirado do mercado, um medicamento é interditado ou uma fronteira é fechada, ela aparece como guardiã silenciosa de um sistema que salva vidas sem ser visto. Mas por trás dessa aparição episódica existe uma engrenagem complexa e indispensável: uma agência de Estado que protege o Brasil de riscos sanitários, sustenta a credibilidade do mercado e viabiliza políticas públicas.
Hoje, essa força invisível precisa ser fortalecida. O futuro da Anvisa e, com ele, a segurança dos brasileiros — depende de três condições: autonomia, técnica e confiança.
Autonomia: a base da credibilidade institucional
Desde sua criação pela Lei nº 9.782/1999, a Anvisa foi concebida como uma autarquia de regime especial. Essa condição não é mero detalhe jurídico: é o que garante que decisões de natureza técnica sejam tomadas com independência, blindadas de interferências momentâneas, pressões políticas ou interesses econômicos.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
A autonomia regulatória se apresenta como o primeiro alicerce da confiança pública, e o mais ameaçado. O esvaziamento de quadros, as transições políticas e a fragmentação de prioridades colocam a agência sob permanente tensão entre urgências conjunturais e o cumprimento de sua missão de Estado.
A regulação sanitária não é neutra, mas deve ser imune a interferência sobre sua independência técnica. Quando uma agência é percebida como dependente do governo de turno ou como instrumento de setores regulados, perde seu capital mais precioso: a legitimidade. Fortalecer sua autonomia significa assegurar mandatos estáveis, previsibilidade de recursos e um contrato de gestão transparente, em que metas sejam pactuadas com base em resultados e não em conveniências.
Técnica: a alma da autoridade reguladora
A Anvisa tornou-se uma das sete agências do mundo que regulam os dez maiores mercados farmacêuticos. Atua em um universo que representa cerca de um quinto do PIB brasileiro, segundo estimativas da própria Anvisa e do IBGE – de alimentos a medicamentos, de cosméticos a dispositivos médicos.
Essa amplitude só é possível porque existe um corpo técnico de alto nível, que opera com base em evidências, protocolos e padrões internacionais.
Mas a capacidade técnica está sob pressão. A defasagem de servidores, o envelhecimento do quadro e a ausência de concursos regulares comprometem o tempo de resposta e a qualidade da análise.
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Enquanto novas tecnologias emergem — terapias gênicas, dispositivos conectados, inteligência artificial, a estrutura operacional ainda reflete um modelo do início dos anos 2000.
Investir em técnica não é apenas contratar mais pessoas. É reconstruir o ecossistema de conhecimento regulatório: modernizar laboratórios públicos, fortalecer a rede de Lacens, ampliar a cooperação com universidades e estimular intercâmbios internacionais.
O mundo caminha para modelos de regulação responsiva, capazes de acompanhar o ciclo de vida dos produtos e incorporar evidências geradas na prática real.
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Essa nova abordagem combina monitoramento contínuo pós-mercado, uso de dados do mundo real (RWD) e evidências do mundo real (RWE) — dados clínicos e operacionais coletados fora dos ensaios tradicionais, mas com valor científico para ajustar decisões regulatórias.
Na Europa e nos Estados Unidos, essa integração já permite que medicamentos e dispositivos tenham suas autorizações adaptadas conforme novos dados de segurança e efetividade surgem.
No Brasil, o avanço nessa direção exige corpos técnicos estáveis, interoperabilidade de dados e uma cultura de avaliação baseada em evidências. Sem isso, o país permanece dependente de pareceres externos e perde soberania científica sobre suas próprias decisões.
Confiança: o elo entre o Estado, o mercado e o cidadão
A confiança é o ativo que faz a regulação funcionar. É ela que permite que o consumidor acredite na bula, que o médico prescreva com segurança e que a indústria invista com previsibilidade.
A Anvisa conquistou respeito internacional ao adotar processos transparentes, consultas públicas, reuniões abertas da diretoria colegiada e mecanismos de Análise de Impacto Regulatório. Esse capital reputacional, porém, precisa ser continuamente alimentado.
Cada ato da agência — da liberação de um produto ao fechamento de um estabelecimento — projeta uma mensagem sobre a capacidade do Estado brasileiro de proteger sua população sem paralisar a economia. Em tempos de desinformação, a regulação precisa ser comunicada com clareza e empatia: não como obstáculo, mas como ponte entre inovação e segurança.
Avançar na confiança pública depende também de fortalecer a coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). A fragmentação entre União, estados e municípios ainda gera zonas cinzentas, sobreposições e lacunas. Uma Anvisa forte não atua sozinha: lidera uma rede, articula saberes e assegura coerência nacional.
O que está em jogo
Fortalecer a Anvisa não é uma reivindicação setorial, e sim um investimento em governança pública.
Sua credibilidade garante a integração entre saúde, economia e comércio internacional.
Ao regular cadeias produtivas que representam cerca de um quinto do PIB brasileiro — medicamentos, alimentos, cosméticos, dispositivos, portos e fronteiras —, a Anvisa não apenas protege a saúde: protege o próprio ambiente econômico que sustenta o país.
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Mais do que isso: uma Anvisa forte é também expressão da soberania científica do Brasil — a capacidade de produzir, interpretar e decidir com base em suas próprias evidências. Onde há regulação sólida, há investimento, inovação e mercado previsível. Onde ela falha, prosperam a incerteza, a insegurança e o risco.
Defender a Anvisa é defender o fio invisível que une saúde, economia e confiança pública. Uma agência sólida salva vidas, mas também garante empregos, investimentos e credibilidade internacional.
Fortalecê-la é mais do que preservar uma estrutura regulatória: é afirmar o papel do Brasil como país capaz de equilibrar desenvolvimento e proteção, mercado e direito, inovação e soberania.