Em meio à mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, realizada em 28 de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, com mais de 120 mortos, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, volta ao centro do debate nacional.
Criada para frear a letalidade policial e assegurar direitos básicos nas comunidades fluminenses, a ADPF se vê hoje confrontada por uma realidade que parece negar frontalmente as ordens do Supremo Tribunal Federal.
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A ADPF 635, proposta em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) com apoio de entidades civis, surgiu para conter o ciclo de mortes em operações policiais no Rio. Seu acórdão, relatado pelo ministro Edson Fachin e julgado em abril deste ano, homologou parcialmente o Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial e fixou medidas de cumprimento obrigatório: uso de câmeras corporais, presença de ambulâncias em campo, isolamento de locais de crime e comunicação imediata ao Ministério Público, entre outras.
Essas medidas formam o núcleo de uma política de segurança constitucionalmente controlada, voltada à redução da letalidade e à proteção da vida. A decisão buscava consolidar a jurisdição constitucional sobre a violência de Estado e afirmar que a Constituição também vale dentro das favelas.
Menos de seis meses depois, o Rio de Janeiro é palco da Operação Contenção, que inverte, ponto a ponto, cada uma dessas diretrizes. Diante disso, o ministro Alexandre de Moraes, atual relator, determinou a abertura de apuração imediata, convocou audiência com autoridades fluminenses, requisitou informações detalhadas ao governador e acionou o Conselho Nacional do Ministério Público para acompanhar o caso. Mais do que uma reação processual, o despacho de Moraes foi um ato de reafirmação institucional, além de indicar a necessidade de apuração federal sobre possíveis crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Todas essas reações convergem em um ponto: o descumprimento deliberado das medidas estruturais da ADPF 635. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro pediu autorização para a atuação de peritos independentes, e denunciou a falta de isolamento de cena e de transparência na perícia.
Por sua vez, a Defensoria Pública da União solicitou medida cautelar para garantir o acompanhamento técnico das necropsias, invocando o direito ao contraditório e ao devido processo legal. Essas demandas apontam para um apagão institucional na investigação e uma barreira à produção de provas.
A ADPF 635 nasceu de uma realidade concreta: a incapacidade do estado do Rio de Janeiro de conter a violência policial. Ao julgá-la, o Supremo buscou instaurar um modelo de segurança pautado por planejamento, proporcionalidade, preservação da vida e transparência nas operações. Essa decisão pretendia materializar o que a Constituição de 1988 sempre prometeu e raramente entregou: o reconhecimento da vida nas periferias como um bem jurídico digno de tutela. A ADPF 635 representa a afirmação de que o Estado democrático não pode conviver com uma política de segurança baseada na excepcionalidade permanente.
A nova operação no Rio revelou que o problema central não é normativo, mas político e institucional. Não há falta de leis ou decisões, há falta de obediência. O descumprimento reiterado das medidas fixadas na ADPF 635 sinaliza um enfraquecimento do princípio de autoridade judicial. Quando decisões do Supremo são ignoradas, o problema deixa de ser técnico e se torna estrutural. O desafio é restabelecer a eficácia prática e simbólica da corte, lembrando que a desobediência não é autonomia federativa, mas ruptura da ordem constitucional.
Os desdobramentos da Operação Contenção mostram que o enfrentamento da violência estatal não se limita à criação de protocolos. Trata-se de uma disputa sobre o próprio significado do Estado de Direito. Há, de um lado, a visão de que o combate ao crime justifica a suspensão de garantias e a relativização da legalidade, e de outro, a compreensão de que a força pública só é legítima dentro dos limites do dever de proteção à vida e de prestação de contas. A ADPF 635 é o espelho dessa tensão: ela revela o abismo entre a Constituição escrita e a Constituição viva.
Mais do que a legalidade de uma operação específica, o que está em jogo é o sentido da jurisdição constitucional em um país que convive com “zonas do não ser”, às quais é negada a humanidade, como enfatizam Ana Flauzina e Thula Pires.
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A incapacidade do Estado do Rio de Janeiro de cumprir decisões dessa envergadura mostra que a violência institucional não é exceção, mas método, e diante disso, a resposta do Supremo precisa ser mais do que simbólica. O prestígio da Constituição depende de sua aplicação real, e sua aplicação depende da autoridade de quem a guarda, por isso, restaurar a força da ADPF 635 não é substituir o Executivo, mas reafirmar que a lei e a Constituição devem ser obedecidas.
A desobediência sistemática às ordens judiciais não é apenas um problema local, é um sinal de corrosão do Estado Democrático de Direito. Uma resposta firme e coerente do Supremo pode, nesse sentido, marcar um ponto de inflexão. Não se trata de confronto entre Poderes ou violação de autonomia federativa, mas sim da reafirmação de uma hierarquia essencial: a de que nenhuma política pública, por mais legítima que se pretenda, está acima do valor da vida.