A derrota da ‘sabotagem inquisitorial’: limites ao agravamento cautelar contra o MP

A decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp 2.161.880/GO representa um momento de significativa maturidade institucional do sistema de justiça criminal brasileiro. O Tribunal Superior, ao estabelecer que o juiz não pode decretar a prisão preventiva quando o Ministério Público (MP) requer expressamente a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, consolida a matriz acusatória e delimita, de forma inarredável, a função do julgador em matéria de restrição da liberdade.

A vedação à atuação judicial ex officio em medidas cautelares pessoais é um pilar introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e um corolário direto da Constituição Federal de 1988, que impõe a separação funcional entre os atores do processo penal.

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O modelo acusatório, como bem pontua a doutrina, exige que as funções de acusar, defender e julgar permaneçam incomunicáveis, sob pena de macular a imparcialidade do juiz e transformar o processo em um simulacro inquisitorial[1].

O juiz deve observar o princípio da inércia em matéria cautelar pessoal, atuando como garantidor, e não como gestor da acusação. Neste ponto, a decisão do STJ alinha-se diretamente com o Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, que postula a rígida separação entre o juiz e a acusação como axioma fundamental de um sistema penal democrático[2].

A vedação legal e a persistência da ilegalidade na base

A Lei 13.964/2019 suprimiu a expressão “de ofício” de diversos dispositivos do Código de Processo Penal (CPP), incluindo o art. 282, §§ 2º e 4º, e, principalmente, o art. 311. A alteração legal pacificou a exigência de provocação dos órgãos legitimados — MP ou autoridade policial — para a decretação da prisão preventiva.

No entanto, a controvérsia persistia: o juiz, no momento da conversão da prisão em flagrante ou da análise de um pedido cautelar, estaria limitado ao que foi requerido pelo Parquet? A resposta do STJ é enfática: sim.

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Conforme a análise do REsp 2.161.880/GO, o juízo de primeiro grau havia convertido a prisão em flagrante em preventiva, ignorando o pleito ministerial que se limitava a medidas menos gravosas, com fundamento em que o magistrado não estaria vinculado ao pedido do órgão acusador.

Ocorre que, como demonstra a constante chegada de Habeas Corpus aos tribunais superiores, a vedação legal tem sido sistematicamente ignorada em muitos juízos estaduais. O fato de o STJ precisar reiterar, em 2025, a impossibilidade de o magistrado ir além do pedido do Parquet revela a persistência de uma “sabotagem inquisitorial”[3] que teima em converter a prisão em flagrante em preventiva ex officio, ou de forma disfarçada, impondo a medida mais grave sem que haja provocação para tal.

A nova tese do STJ visa coibir, de uma vez por todas, essa última modalidade de atuação ilegal: a decretação mais gravosa que a postulação ministerial.

Tal entendimento, todavia, foi rechaçado.

A tese da ilegalidade e os votos vencedores

A tese vencedora na Quinta Turma, conduzida pelo voto do ministro Joel Ilan Paciornik, foi cristalina ao identificar a atuação judicial como uma forma oblíqua de decretação ex officio.

O raciocínio do STJ se desdobra em dois pilares fundamentais, hoje sumariados na tese de julgamento:

Violação ao Sistema Acusatório (Art. 129, CF): O juiz que impõe a medida mais gravosa (prisão preventiva) do que a postulada pelo dominus litis (medidas cautelares diversas) rompe a separação de poderes. A função jurisdicional é de acolher ou negar o pedido, não de excedê-lo. Ao atuar ultra petita, o magistrado age como um substituto do órgão de acusação, ferindo a neutralidade que lhe é constitucionalmente imposta.
Imparcialidade e Paridade de Armas: A atuação que impõe restrição de liberdade sem a devida provocação legal viola o princípio da paridade de armas. Trata-se de uma intervenção indevida do julgador no campo de discricionariedade do MP, comprometendo a confiança na jurisdição[4].

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já havia consolidado a inconstitucionalidade da prisão preventiva ex officio na audiência de custódia, por exemplo, no julgamento do HC 188.889/DF, cuja fundamentação se baseia justamente na necessidade de provocação para que seja mantida a integridade do sistema acusatório[5]. O STJ, agora, avança para barrar a tática de “reformatio in pejus” judicial não provocada.

O ministro Joel Ilan Paciornik foi categórico ao afirmar que não se trata de subordinar o juiz à vontade do acusador, mas de “exigir a observância da legalidade estrita em matéria de restrição da liberdade pessoal”[6].

Implicações finais para a advocacia e a jurisdição

A decisão do STJ é um avanço na segurança jurídica e uma valiosa ferramenta para a defesa. Em primeiro lugar, ela oferece um precedente de peso para anular ou reformar decisões de juízos que, na conversão do flagrante, desconsiderem a manifestação do MP por medidas alternativas.

Em segundo lugar, a tese consolida que, mesmo diante de crimes de alta gravidade (o caso envolvia tráfico de drogas), a técnica processual e as garantias constitucionais não podem ser atropeladas pelo voluntarismo judicial. A decisão judicial deve ser sempre reativa e subsidiária à provocação, garantindo que o direito fundamental à liberdade só seja afastado quando, cumulativamente, houver requerimento formal e fundamentação idônea.

O Brasil se aproxima, cada vez mais, de um Processo Penal em que a imparcialidade é garantida não apenas pela lei, mas pela efetiva limitação da atuação do Estado-juiz em favor das liberdades.

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Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.161.880/GO. Relator p/ Acórdão: Ministro Joel Ilan Paciornik. Quinta Turma, julgado em 03 jun. 2025, DJe 02 jul. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 188.889/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma, julgado em 06 out. 2020, DJe 09 out. 2020.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

Zaffaroni, E. R.; Pierangeli, J. H. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

[1]  LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. O autor afirma que a vedação à decretação ex officio é uma garantia fundamental do modelo acusatório, sendo o juiz um garantidor e não um gestor da prova ou da acusação.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. O autor elenca a separação rígida entre o juiz e a acusação como uma das características essenciais do sistema acusatório, sendo o juiz um agente passivo e inerte.

[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. O autor utiliza o termo “sabotagem inquisitorial” para descrever os movimentos de resistência do Judiciário em aplicar integralmente as regras do sistema acusatório, especialmente a vedação da prisão ex officio.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. O autor destaca que, após o Pacote Anticrime, qualquer intervenção judicial cautelar sem requerimento formalizado de uma das partes legitimadas configura nulidade absoluta por ofensa à matriz constitucional do processo.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 188.889/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma, julgado em 06 out. 2020, DJe 09 out. 2020. O STF, neste julgado, reforçou que a supressão do termo “de ofício” do art. 310, II, do CPP (na redação dada pela Lei 13.964/2019) veda a conversão da prisão em flagrante em preventiva na audiência de custódia sem prévio requerimento do MP ou representação da autoridade policial.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.161.880/GO. Relator p/ Acórdão: Ministro Joel Ilan Paciornik. Quinta Turma, julgado em 03 jun. 2025, DJe 02 jul. 2025. O Ministro ressalta, no corpo do acórdão, que a exigência de provocação garante o “respeito às funções institucionais de cada parte.”

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