Quando o Estado mata, todos fracassam

A madrugada que parou o Rio de Janeiro

Na última terça-feira, 28 de outubro, moradores dos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, acordaram sob o som de tiros. Trabalhadores não puderam sair de casa. Estudantes não foram à escola. Doentes não conseguiram atendimento. A cidade parou.

A megaoperação denominada Contenção tinha como objetivo cumprir mais de 160 mandados contra integrantes do Comando Vermelho. O resultado, porém, foi o maior massacre policial da história do país. Até o momento da escrita deste texto, mais de 130 pessoas haviam sido mortas. Em nenhum lugar do mundo uma operação com esse número de mortos pode ser considerada bem-sucedida.

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Pessoas que cometem crimes devem ser presas, não executadas. Devem ser processadas com todas as garantias legais e julgadas, não “neutralizadas”. É o que exige a Constituição (art. 5º, LVII). E convém lembrar: o Brasil não admite pena de morte (art. 5º, XLVII, a). Mais de uma centena de mortes revela ou uma política de segurança absolutamente equivocada ou a opção deliberada por uma política de extermínio com pele-alvo definidos, travestida de combate ao crime. Entre a legalidade e a letalidade, o Estado tem escolhido o lado errado.

A política da morte e as respostas institucionais

Seis meses antes dessa tragédia, o Supremo Tribunal Federal havia decidido, na ADPF 635, que o estado do Rio de Janeiro deveria elaborar e cumprir um plano para reduzir a letalidade policial. O resultado da semana passada violou frontalmente esse comando.

Mesmo assim, o governador Cláudio Castro (PL) declarou que a operação fora exitosa, pois “as únicas vítimas” seriam os quatro policiais mortos no confronto. O discurso oficial, além de insensível, evidencia o processo de desumanização que sustenta a lógica da violência: vidas negras e periféricas passam a valer menos. E os próprios policiais são usados como escudo e instrumento dessa mesma política.

Os policiais também são vítimas do Estado, que puxa o gatilho com eles e contra eles. Que os coloca na linha de frente de uma guerra que o próprio Estado alimenta e perpetua. São expostos a riscos extremos, sem estrutura, sem acolhimento psicológico, sem direção estratégica, que mata de um lado e se destrói do outro.

O ministro Alexandre de Moraes, atual relator da ADPF 635, determinou que o Governo do Rio de Janeiro prestasse informações sobre o descumprimento das ordens judiciais. É medida necessária. Mas a repetição dessas chacinas nos obriga a uma reflexão mais profunda: qual é o limite da atuação judicial em face de um Estado que insiste em matar? Até que ponto o STF pode e deve intervir, por meio de um processo estrutural, ampliando seu objeto (até onde?) para evitar que a exceção se torne regra?

Entre a lei e a bala

Processos estruturais como a ADPF 635 têm como propósito a utilização da jurisdição para obtenção de uma tutela jurídica coletiva a fim de que violações de direitos fundamentais cometidas pelo poder público sejam cessadas e sanadas, através de um diálogo institucional. A ADPF 635 nasceu das vozes de quem sofre diariamente as operações, incursões e “efeitos colaterais” do Estado. Essas vozes exigem políticas de segurança que respeitem direitos fundamentais, especialmente o direito à vida.

E houve avanços significativos. Conforme mencionado pelo ministro Edson Fachin em seu voto, dados do Instituto de Segurança Pública mostram que, entre 2019 e 2023, as mortes violentas no Rio caíram 18,4% e as mortes por intervenção policial foram reduzidas em 52%.

Esses dados evidenciam que é preciso mudar a forma de conceber uma política de segurança pública, e a ADPF 635 abriu um caminho positivo que deve ser posto em prática. Por outro lado, na decisão final, o Supremo recuou em pontos sensíveis da liminar, como a restrição ao uso de helicópteros como plataformas de tiro e a proibição de ocupar escolas e postos de saúde em operações.

O argumento da “guerra às drogas” já não convence. O que se vê é uma guerra contra os pobres, contra os negros, contra os que vivem em territórios esquecidos. Jovens assassinados, mães enlutadas, comunidades sob terror. Policiais transformados em ferramentas descartáveis de um sistema que se repete há décadas.

O tempo da injustiça é a urgência. O tempo da morte não pode ser o tempo da democracia.

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Nenhuma operação que termina com mais de cem mortos pode ser chamada de vitória. É um fracasso humano, institucional e constitucional. E é um fracasso compartilhado. Um fracasso do Governo do Rio de Janeiro, que insiste numa política de segurança pública da morte, da violência e do racismo estrutural. Um governo que transformou a polícia, órgão de Estado, em órgão político e de governo. Do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e da PGR, que têm andado a reboque já há algum tempo.

Da Defensoria Pública do Estado do Rio, que precisa proteger e representar as comunidades atingidas, mas tem óbices impostos pelo próprio Estado. Do STF, que ampliou desmedidamente o objeto de um processo estrutural como a ADPF 635 e precisa zelar pela força normativa de suas decisões. E de todos nós, de toda a sociedade, que não pode normalizar a morte como método de governo.

Entre o Estado de letalidade e o Estado de legalidade, a Constituição começa pela vida.

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