A teoria do domínio do fato segue útil para identificar quem realmente controla a dinâmica criminosa em estruturas complexas, mas sua força explicativa só aparece quando acoplada à reconstrução minuciosa do processo decisório, ou seja, o caminho real pelo qual a sonegação se torna possível. Em crimes tributários, isso implica abandonar o atalho da “autoria por cargo” e perguntar, precisamente, quem decidiu o “como” e o “quando”, quem poderia ter impedido e quem, de fato, operou as engrenagens do esquema. Essa inflexão metodológica — do organograma para o iter criminis — não é mero preciosismo acadêmico: ela estrutura a linha jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e, na prática, abre espaço concreto para defesas consistentes.
O REsp 1.854.893/SP, cuja orientação permeia o Informativo 681, cristalizou a premissa de que a posição de gestor, diretor ou sócio não basta para a imputação penal em matéria tributária. O domínio do fato não pode funcionar como um “coringa” que substitui prova: é indispensável narrar e demonstrar o liame causal e o dolo, sob pena de recair em responsabilidade objetiva, o que o ordenamento simplesmente não admite. Esse filtro dogmático ganha chão no AgRg no REsp 1.874.619/PE, quando a Sexta Turma alerta que a teoria opera em plano abstrato e não supre, sozinha, a verificação do nexo entre a conduta do agente e o resultado lesivo. Em termos claros, é equivocado afirmar que alguém é autor “porque detém o domínio do fato” se, no mundo dos fatos, faltam circunstâncias que conectem suas decisões, ordens ou omissões relevantes ao resultado de supressão ou redução de tributo.
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Esse mesmo caminho desemboca, com vigor, no julgamento do Habeas Corpus nº 1.012.226-SC de 2025, em que o STJ reconheceu ilegalidade manifesta ao repelir a responsabilização objetiva de sócio-administrador, consolidando o entendimento de que a simples condição de sócio ou gestor não basta para caracterizar autoria em crimes tributários. A decisão enfatiza que deve haver comprovação clara do nexo causal entre a conduta do acusado e o resultado criminoso, afastando a responsabilização automática baseada apenas em posição societária. Nesse caso, o Tribunal declarou a inépcia da denúncia, reforçando duas advertências doutrinárias que valem como roteiro: primeiro, o autor é quem detém o domínio final do curso causal, isto é, quem decide se o fato ocorrerá e controla sua execução, ainda que por auxílio ou incentivo intelectual; segundo, nem sempre a atuação do sócio que termina com lesão ao fisco traduz crime, e confundir inadimplemento, falhas de supervisão ou delegação mal desenhada com fraude dolosa é abrir a porta para a culpa em sentido estrito onde o tipo exige dolo. Sem prova concreta de uma atuação finalisticamente orientada à fraude, a teoria do domínio do fato vira rótulo.
Também julgado este ano, o AgRg no RHC 133828/PR conferiu a medida processual dessa orientação: a denúncia que se limita a invocar a condição societária do acusado — e, por consequência, a sua “responsabilidade pela fiscalização e pagamento” — é inepta quando não descreve o nexo causal. O STJ foi direto: é insuficiente e equivocado atribuir autoria pela posição ocupada na empresa, mesmo quando se recorre, expressa ou implicitamente, ao domínio do fato. Sem a ponte entre conduta e resultado, falta justa causa, e o trancamento por meio de habeas corpus não é exceção extravagante, mas a restauração do devido processo. O recado, para acusação e defesa, é claro. Se o Ministério Público pretende sustentar a autoria com base em domínio funcional, deve apresentar “o mapa do domínio”: decisões específicas, ordens, aprovações anômalas, manipulações de parâmetros fiscais, reuniões e interações que revelem quem concebeu, autorizou, executou e manteve o esquema — e quando o poderia ter impedido.
Do lado da defesa, esses precedentes oferecem um desenho operacional. A estratégia robusta troca a retórica societária pela prova de governança e de fluxo decisório. É nessa chave que logs de ERP, perfis de aprovação por alçadas, segregação de funções, registros de abertura e fechamento de períodos contábeis, e-mails com comandos ou vetos, políticas internas sobre benefícios e compensações e trilhas de auditoria ganham relevância. Reconstruir o “quem-decide-o-quê” permite mostrar, com dados, que o acusado não detinha o controle funcional do fato, que não interveio nos pontos críticos do esquema ou que atuou em contexto de delegação regular, sem ciência e sem poder real de impedir a consumação. Essa reconstrução serve tanto para o mérito quanto para a admissibilidade: evidencia a ausência de dolo e nexo causal e, quando a denúncia se apoia em cargos ou cotas, fundamenta a inépcia da inicial e o trancamento do processo.
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A conexão com a dogmática é importante porque evita leituras hipertensas da teoria. Welzel situou o domínio final como elemento material de autoria; Roxin refinou e pluralizou o conceito (domínio da ação, da vontade e funcional), sem pretender universalidade, e reconheceu zonas em que a teoria não opera. Em crimes tributários dolosos, o que se busca é o domínio funcional, em linguagem prática, quem decide e comanda a fraude — por exemplo, a emissão de documentos ideologicamente falsos, a escrituração paralela, a compensação espúria — e quem tem poder efetivo de impedir. A passagem do plano teórico ao probatório é o que separa responsabilidade penal de simples responsabilização por posição. É por isso que o AgRg no REsp 1.874.619/PE advertiu contra o salto lógico entre “cargo” e “autoria”, e que o REsp 1.854.893/SP interditou a transformação do domínio do fato em atalho para suprir prova.
O efeito prático é civilizatório. Investigações deixam de se contentar com organogramas e passam a perseguir o trilho de decisões, denúncias deixam de copiar e colar qualificações societárias e precisam contar a história causal, juízos de admissibilidade se tornam filtros de qualidade, e o habeas corpus volta a operar como válvula de proteção quando o processo deriva para a sanção por posição. Para o contencioso, a mensagem é simples e exigente: primeiro se prova o fato e o processo pelo qual ele se tornou possível, depois se atribui autoria a quem, de fato, o controlou. Tudo o mais é presunção e, no processo penal democrático, presunção contra o réu não deve ser admitida.