A Constituição de 1988 inaugurou um constitucionalismo de dupla abertura: material, aos direitos fundamentais, e internacional, aos direitos humanos. Essa estrutura aberta permitiu a formação do bloco de fundamentalidade, núcleo normativo que integra a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos em um mesmo padrão de validade[1].
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O ponto central desse debate — e que ganha relevo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — é que os standards do Sistema Interamericano de Direitos Humanos não são apenas referências externas, mas critérios internos de admissibilidade das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs). Em outras palavras, a violação de um direito protegido pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) equivale à lesão de um preceito fundamental da Constituição, legitimando o cabimento da ADPF.
ADPF: instrumento de integração constitucional e convencional
A ADPF, disciplinada pela Lei nº 9.882/1999, foi concebida para resguardar a supremacia da Constituição em situações em que outros instrumentos processuais se mostram insuficientes. Como explicou Gilmar Ferreira Mendes, seu objetivo é assegurar a unidade da Constituição diante de ameaças a seus preceitos fundamentais, funcionando como uma “ponte de integração” entre os diversos níveis de proteção de direitos.
Essa função integradora se amplia quando compreendemos que o bloco de fundamentalidade — formado pelos preceitos constitucionais e pelos direitos convencionais — é o verdadeiro padrão de admissibilidade da ADPF.
Desse modo, não apenas o texto constitucional, mas também os standards interamericanos reconhecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) podem ser invocados como fundamento legítimo do cabimento da ação. Quando o ato estatal contraria obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em matéria de direitos humanos, há também uma lesão a um preceito fundamental da Constituição de 1988.
O STF e o reconhecimento dos standards interamericanos
O Supremo Tribunal Federal tem, progressivamente, incorporado os standards interamericanos ao seu controle de constitucionalidade.
No RE 466.343, o Tribunal reconheceu que a CADH produz efeito paralisante sobre as leis internas incompatíveis, ao vedar a prisão civil do depositário infiel. No RE 511.961, o ministro Gilmar Mendes citou o Parecer Consultivo n.º 5/85 da Corte IDH e o Informe Anual da Relatoria Especial da OEA para Liberdade de Expressão, ao concluir que a exigência de diploma para exercício do jornalismo violava o artigo 13 da Convenção Americana.
Essas decisões demonstram que os tratados e suas interpretações oficiais integram o direito constitucional positivo brasileiro.
ADPF 33 e a formação do bloco de fundamentalidade
Na ADPF 33, o STF definiu os contornos do que se deve entender por “preceito fundamental”. O voto do relator indicou que os preceitos fundamentais e estabeleceu os contornos doutrinários e jurisprudenciais do conceito desse conceito. O relator reconheceu que é impossível fixar, a priori, um rol taxativo desses preceitos, mas apontou três eixos centrais que compõem seu conteúdo: (1) o núcleo explícito dos direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição; (2) os princípios estruturantes protegidos pela cláusula pétrea (art. 60, §4º); e (3) os princípios sensíveis do artigo 34, VII, que asseguram a unidade federativa e o respeito aos direitos da pessoa humana.
Nesse paradigma foi estabelecido o padrão de admissibilidade da ADPF, que norteou a doutrina até então.
ADPF 462: o precedente da integração entre Constituição e Convenção
O marco dessa integração é a ADPF 462, relatada pelo ministro Edson Fachin, que julgou inconstitucional lei municipal de Blumenau que proibia o uso das expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual” em documentos escolares.
O relator fundamentou a decisão tanto nos direitos constitucionais à igualdade e à dignidade humana quanto no artigo 24 da CADH, interpretado à luz do Parecer Consultivo 24/2017 da Corte IDH, que reconheceu a identidade de gênero e a orientação sexual como categorias protegidas.
Ao aplicar o precedente interamericano como fundamento normativo, o ministro Fachin realizou o que se denominou controle de compatibilidade constitucional e convencional. Assim, o parâmetro de admissibilidade e julgamento da ADPF não é apenas a Constituição formal, mas o bloco de fundamentalidade, formado pela integração entre o texto constitucional e os standards interamericanos.
Esse precedente consolidou a tese de que a ofensa a um direito convencional é, simultaneamente, lesão a um preceito fundamental da Constituição, legitimando o ajuizamento da ADPF.
O sistema interamericano como parte do direito constitucional brasileiro
Como ensina Raúl Gustavo Ferreyra, a Constituição contemporânea participa de uma “conglobação de direitos constituintes de diferentes fontes”, na qual o direito internacional dos direitos humanos integra a própria substância do constitucionalismo democrático.
No Brasil, essa conglobação foi uma escolha constitucional expressa. O artigo 4º da Constituição afirma a prevalência dos direitos humanos como princípio das relações internacionais; o artigo 5º, §§2º e 3º, reconhece os tratados de direitos humanos como parte do catálogo constitucional; e o artigo 7º do ADCT determina que o país propugnará pela criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos — concretizado na Corte IDH.
Assim, a interpretação que a Corte Interamericana confere à CADH integra o bloco de fundamentalidade e, por consequência, o parâmetro de admissibilidade da ADPF. O controle de constitucionalidade, no Brasil, é também controle de convencionalidade.
Conclusão: a ADPF como instrumento de convergência normativa
A tese do bloco de fundamentalidade revela que o STF passou a adotar um modelo integrado de jurisdição constitucional, no qual a Constituição e a Convenção Americana formam um mesmo padrão normativo de validade.
Desse modo, a admissibilidade da ADPF não se limita à análise de preceitos internos, mas se estende à verificação da compatibilidade dos atos do poder público com os standards interamericanos de direitos humanos.
A ADPF 462 consolidou esse entendimento, demonstrando que a violação de direitos convencionais — especialmente os interpretados pela Corte IDH — constitui lesão a preceito fundamental, legitimando o cabimento da ação.
O ponto inovador está na interpretação ampliada do conceito de preceito fundamental, que inclui não apenas normas textuais, mas também aquelas que conferem densidade e efetividade ao sistema constitucional de direitos. Essa concepção abriu caminho para a incorporação dos direitos convencionais e dos standards interamericanos como parte integrante do mesmo núcleo de proteção.
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A partir dessa leitura, o bloco de fundamentalidade torna-se o padrão de admissibilidade das ADPFs, integrando a Constituição e a Convenção Americana em um sistema único de proteção dos direitos humanos. O STF, ao adotar essa orientação, confirma que a jurisdição constitucional brasileira é também uma jurisdição interamericana de direitos humanos, reafirmando a vocação democrática da Constituição de 1988.
[1] Conforme sustentação oral feita em nome da Clínica Interamericana de Direitos Humanos da UFRJ do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos – NIDH, na ADPF n. 466, disponível em https://youtu.be/H6K2fFvlizM?si=QX–Nqi_DlH7q-au