Quem pretende doar ou transmitir bens fora do país vive hoje um impasse com efeito direto no bolso. De um lado, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou que os Estados não podem cobrar o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre heranças e doações envolvendo o exterior sem a edição prévia de lei complementar federal. De outro, o Congresso avança com o PLP 108, que justamente define como — e por qual Estado — essa cobrança passaria a ocorrer, além de alterar a base de cálculo para “valor de mercado”. Em termos práticos: decisões patrimoniais tomadas agora podem significar economia ou custo adicional relevante no curto prazo.
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Como chegamos aqui? O ITCMD foi previsto na Constituição Federal de 1988, que atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituí-lo e arrecadá-lo, com a finalidade de tributar a transferência de bens e direitos por herança ou doação. Trata-se de fonte importante de receita estadual e de um ponto sensível no planejamento patrimonial de famílias. Para os casos que envolvam bens ou pessoas no exterior, porém, a Constituição condicionou a cobrança à edição de lei complementar federal que defina critérios e elementos de conexão com o Estado competente para tributar.
A ausência dessa lei não impediu que alguns Estados — como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais — editassem leis ordinárias tentando alcançar heranças e doações com conexão internacional. O resultado foi um cenário nebuloso e de insegurança jurídica para o contribuinte, entre o risco de autuação e a falta de base legal sólida para sustentar a cobrança.
Em 2021, ao julgar o Tema 825 de repercussão geral (RE 851.108), o STF firmou o entendimento de que a cobrança do ITCMD pelos Estados, em casos envolvendo o exterior, é inconstitucional sem a lei complementar exigida pela Constituição. O mesmo raciocínio foi aplicado em diversas ADIs propostas pela Procuradoria-Geral da República, declarando-se inconstitucionais dispositivos de leis estaduais — a exemplo da legislação paulista.
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Depois, sobreveio a Emenda Constitucional nº 132/2023 (reforma tributária), que incluiu uma regra de transição para permitir a tributação pelos Estados enquanto não fosse editada a lei complementar. Isso reacendeu dúvidas: seria possível “ressuscitar” leis estaduais antes reputadas inconstitucionais?
Felizmente, o STF vem dando sinais de prestigiar a segurança jurídica.
Um primeiro exemplo disso, foi a decisão da Primeira Turma do STF, no RE 1.553.620, cujo acórdão foi publicado em 2 de outubro de 2025. O Tribunal reforçou que a Constituição exige lei complementar federal para viabilizar a cobrança do ITCMD em heranças e doações com conexão internacional. E, já à luz da EC 132/2023, assentou que as leis estaduais anteriores não foram convalidadas — isto é, não podem servir de fundamento legal para tributar até que sobrevenham a lei complementar e, depois dela, novas leis estaduais específicas.
Igualmente, no julgamento ainda em andamento da ADI 6838, o Plenário do STF já formou maioria para declarar a inconstitucionalidade da Lei estadual do Estado do Mato Grosso sobre o mesmo tema. Nesse julgamento, está prevalecendo o voto do Ministro Cristiano Zanin, no sentido de que embora a EC 132/2023 tenha conferido competência para o Estados instituírem o ITCMD sobre as heranças e doações vindas do exterior, para que tal competência seja exercida é preciso que os Estados editem novas leis para instituir o imposto.
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Em paralelo, tramita no Congresso o PLP 108, responsável por regulamentar a segunda etapa da reforma. O texto, já aprovado no Senado e pendente de votação final na Câmara, altera pontos sensíveis do ITCMD com impacto direto em planejamentos patrimoniais e sucessórios. Entre as principais previsões estão os critérios de conexão para a cobrança em operações que envolvam o exterior:
Herança: o imposto seria devido ao Estado do domicílio no Brasil do falecido; se o falecido residir no exterior, a competência recairia sobre o Estado do domicílio do herdeiro.
Doação: o imposto seria devido ao Estado do domicílio no Brasil do doador; se o doador residir no exterior, a competência passaria ao Estado do domicílio do donatário.
Outro ponto relevante é a mudança da base de cálculo, que passaria a considerar o valor de mercado de bens, direitos e participações societárias. Essa alteração é significativa e busca coibir subavaliações, mas também pode elevar o montante devido em situações de forte valorização de ativos.
Momento de transição normativa
A decisão do STF e o avanço do PLP 108/2024 evidenciam um período de transição no tratamento do ITCMD sobre bens e doações internacionais. De um lado, reafirma-se a importância da segurança jurídica e da fidelidade ao texto constitucional; de outro, desenha-se uma nova moldura para a tributação, com critérios uniformes e base de cálculo potencialmente mais gravosa.
Impactos práticos. Para famílias e empresas familiares, os reflexos são imediatos:
Revisão de estruturas: planejamentos já desenhados (holdings, acordos de sócios, regras sucessórias) podem precisar de ajuste para calibrar governança e a eventual carga do ITCMD sob a nova base de cálculo.
Janela jurídica: o espaço aberto pelo entendimento atual do STF tende a se estreitar se (e quando) o PLP 108 for aprovado e as leis estaduais forem atualizadas. Operações que hoje contam com incerteza favorável podem ficar mais onerosas e burocráticas.
Mapeamento de competência: quem possui ativos ou estruturas fora do país deve identificar qual Estado teria competência para cobrar o ITCMD e quais alíquotas poderiam incidir após a regulamentação.
Para se preparar, é recomendável realizar simulações por ativo (imóveis, carteiras financeiras, quotas/ações) para mensurar impactos financeiros sob “valor de mercado”; identificar os domicílios de doadores, herdeiros e donatários à luz dos critérios de conexão propostos; e reforçar a governança, com regras claras de sucessão que reduzam contenciosos e custos de reorganização futura.
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Em síntese, o recado é duplo: a jurisprudência do STF segue impondo limites à tributação sem lei complementar, mas o PLP 108 antevê um novo padrão. Nesse contexto, o tempo importa — não para correr riscos, e sim para decidir com base em cenários concretos, reduzindo incertezas e surpresas na hora de transmitir patrimônio.