A Justiça é feita de palavras, mas só encontra sentido quando alguém está disposto a ouvi-las. Ouvir é mais do que registrar sons. É reconhecer o que há de humano por trás das petições, dos autos e das provas. Esse ato silencioso, que parece banal, é o que transforma decisões em confiança.
É exatamente essa confiança que está em jogo no debate que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trava agora sobre o direito do cidadão, por meio de seu advogado, de decidir se o julgamento do seu caso ocorrerá de forma presencial, com sustentação oral, ou em ambiente virtual. A discussão pode parecer técnica, mas revela um dilema essencial: queremos uma Justiça que ouça pessoas ou apenas uma máquina que processa dados?
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Nos últimos anos, o avanço da digitalização e das sessões virtuais transformou profundamente a rotina do Judiciário brasileiro. Relatórios mostram que a maioria dos processos já tramita de forma eletrônica, e que os julgamentos virtuais se tornaram prática corrente em tribunais de todo o país. Esse movimento trouxe ganhos de celeridade e redução de custos, mas também impôs um desafio invisível: como preservar o contraditório vivo e o diálogo direto entre quem julga e quem é julgado? Quando o processo se reduz a um fluxo de arquivos digitais, o direito de ser ouvido corre o risco de se tornar mera formalidade.
A advocacia brasileira tem defendido que essa escolha pertença ao cidadão — porque o direito de ser ouvido é parte do próprio direito de defesa. A presença do advogado diante do julgador é uma forma de restabelecer a escuta e o diálogo que conferem legitimidade às decisões. Quando o julgamento se torna apenas um arquivo em tela, o contraditório se empobrece e a confiança se dilui. O processo segue, mas o encontro desaparece.
Há protagonistas nessa defesa em todo o país. Entidades e advogados têm levado ao CNJ a mesma preocupação: preservar o direito de ser ouvido. Entre eles, a OAB Rondônia apresentou propostas para garantir que o cidadão possa participar ativamente do julgamento de seu caso e para que magistrados retomem a presença nas comarcas após a pandemia, restabelecendo o vínculo direto com as comunidades que são impactadas por suas decisões. Uma Justiça distante não ouve. E uma Justiça que não ouve, erra de longe.
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Essas causas nascem de uma convicção simples: a tecnologia deve libertar o humano para o que só o humano pode fazer — interpretar, ponderar, reconciliar. Não afastá-lo desse papel. Quando a eficiência se torna um fim em si mesma, o sistema deixa de aprender com a sociedade e passa apenas a reagir a ela.
A Justiça do futuro precisa ser digital, mas não desumana. O verdadeiro progresso não está em eliminar a presença, mas em usá-la com propósito.
O que está em jogo nesse debate do CNJ não é um detalhe procedimental: é a própria capacidade do Judiciário de continuar sendo um espaço de escuta.
O que perdemos quando a Justiça para de ouvir não é apenas empatia. Perdemos o sentido, a legitimidade e a confiança. A tecnologia pode até ser o ouvido. Mas a escuta, essa ainda precisa ser humana.