Transparência simbólica: a lição por trás das 30 declarações médicas ao CFM

Sete meses após a entrada em vigor da Resolução 2.386/24 do Conselho Federal de Medicina (CFM), apenas 30 médicos brasileiros declararam possuir vínculos com a indústria da saúde[1]. O número representaria 0,005% dos mais de 600 mil profissionais registrados no país. Os dados expõem um problema que vai muito além da adesão formal: a distância entre norma e efetividade no sistema regulatório brasileiro.

A norma existe, mas não vigora

A Resolução 2.386/24 é a primeira tentativa nacional de exigir transparência nas relações entre médicos e indústrias farmacêuticas, de dispositivos médicos e insumos de saúde. Ela impõe o dever de declarar vínculos – ainda que não os valores envolvidos – sempre que houver prestação de serviços, como palestras, consultorias ou participação em pesquisas.

A proposta é louvável. Contudo, a forma de implementação – sem comunicação direta com os profissionais, sem plataforma acessível ao público e sem plano de fiscalização – revela o mesmo padrão que tem marcado outras iniciativas no campo da regulação sanitária: transparência simbólica. Publica-se a norma, mas não se constrói o caminho para seu cumprimento.

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

Em exposição acadêmica sobre o tema, defendi que a completa observância, aplicabilidade e cumprimento da legislação só serão efetivadas se houver coerção real e campanhas de conscientização pública. A experiência recente apenas confirma o diagnóstico: boa vontade normativa não basta.

Competência e processo: os limites do CFM

Há outro ponto que merece reflexão. O CFM tem competência para disciplinar a conduta médica, mas não para regular toda a dinâmica da interação entre profissionais e empresas, que envolve agentes econômicos, gestores públicos e pesquisadores. Ao elaborar a Resolução 2.386/24 sem consulta pública ou diálogo interinstitucional, o CFM atua de forma unilateral, sem a escuta necessária de outros atores regulados.

O déficit procedimental enfraquece a legitimidade da norma e explica, em parte, sua baixa adesão. A falta de engajamento não é simples resistência dos médicos: é também reflexo da ausência de governança participativa na formulação da regra.

O exemplo mineiro: transparência sem consequência

A situação CFM repete o que já se viu em Minas Gerais, único estado com lei específica sobre o tema. Desde 2017, as Leis 22.440/16 e 22.921/18 obrigam empresas de saúde a declararem benefícios concedidos a profissionais. O modelo, inspirado no norte-americano Sunshine Act, foi pioneiro, mas aparentemente inefetivo. Em quase uma década, nenhuma penalidade foi aplicada a empresas que omitiram informações.

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Uma reportagem do site UOL indica que, apenas em Minas Gerais, a indústria da saúde transferiu R$ 198 milhões a médicos entre 2017 e 2022, sem que isso tenha resultado em qualquer ação fiscalizatória. Ou seja, o problema não é a ausência de norma, mas a ausência de Estado?

Transparência que não comunica

Mesmo quando há cumprimento formal da resolução, a falta de divulgação pública das informações – veja que o CFM ainda não publicou as declarações recebidas – mantém o paciente na escuridão. A transparência, quando restrita a arquivos internos, não corrige a assimetria informacional entre médico e paciente. E, sem comunicação ativa e acessível, o objetivo de reforçar a confiança social na medicina se perde.

O debate ético, portanto, precisa se deslocar: de uma transparência burocrática (voltada ao arquivo) para uma transparência comunicacional (voltada ao cidadão). Do contrário, estaremos diante de uma norma que existe apenas para ser citada, não para ser cumprida.

Ética e legitimidade na interação médico-indústria

A relação entre médicos e indústria é legítima e necessária para o avanço científico e tecnológico em saúde. O que se exige é que ela ocorra dentro de parâmetros éticos e transparentes. As normas de autorregulação setorial – como os Códigos de Conduta da Interfarma e da Abimed – já oferecem diretrizes robustas nesse sentido. Falta ao poder público estatal assumir o papel de coordenar, fiscalizar e dar visibilidade a essas interações, se assim desejar.

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A demonização da indústria não resolve o problema. O que se busca é institucionalizar a confiança, e não a substituir por desconfiança generalizada.

Conclusão: a lição das 30 declarações

As 30 declarações recebidas pelo CFM são mais do que um número; são um espelho da distância entre o que o Brasil legisla e o que efetivamente pratica.

Temos leis modernas, códigos éticos e resoluções detalhadas. Mas ainda nos falta o essencial: um sistema de enforcement e comunicação pública capaz de transformar a transparência de conceito em realidade.

Enquanto isso não ocorre, continuaremos a conviver com normas que brilham no papel e se apagam na prática. Seria este o (real) desejo?

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[1] Conforme notícia em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2025/10/17/medicos-nao-aderem-a-norma-do-cfm-sobre-divulgacao-de-conflito-de-interesse.htm

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