Nas últimas semanas tem sido divulgado o shutdown nos EUA, e a ameaça de paralisação de diversos serviços públicos, que já começaram[1].
E no que consiste exatamente isso? Trata-se de questão bastante interessante de Direito Financeiro, e evidencia a importância que o orçamento público representa em qualquer país do mundo.
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Como se pode constatar, a administração pública americana sofre graves e amplas paralisações sempre que um impasse dessa natureza ocorre, que se agravam à medida que o tempo passa sem solução — e, neste caso, tudo indica tratar-se de uma das mais longas, já que o mês de outubro se encerra com trinta dias de paralisação[2]. O episódio evidencia como as decisões incorporadas à lei orçamentária são politicamente sensíveis, complexas e permeadas por intensa disputa de poder e interesses. Revela também diferenças relevantes entre o processo orçamentário norte-americano e o brasileiro, que dispõe de mecanismos jurídicos capazes de evitar paralisações semelhantes, como veremos a seguir.
O shutdown nos Estados Unidos representa um fenômeno peculiar – a suspensão forçada e deliberada de serviços pelo próprio Estado. Diante de impasses orçamentários entre o Legislativo e o Executivo, a máquina pública federal é parcialmente desativada, afetando desde agências reguladoras e parques nacionais até museus e centros de pesquisa.[3] Os primeiros sinais começam com deficiência na prestação de serviços públicos, como já ocorre no tráfego aéreo; evolui para falta de pagamento de servidores e fornecedores, e avança para demissões em massa, além de outras consequências.
A gênese dessa disfunção é política e jurídica.
Impasses entre os congressistas, como neste caso, decorrem de divergências profundas: os republicanos defendem cortes mais amplos em programas sociais e a redução dos gastos federais, por considerarem que o déficit do governo segue trajetória insustentável; já os democratas propõem ampliar os investimentos em saúde, educação e infraestrutura, sustentando que os cortes pretendidos pelos republicanos afetariam diretamente milhões de famílias norte-americanas. O resultado é um impasse político em que nenhuma das propostas avança[4].
Juridicamente, o Artigo I, Seção 9, da Constituição Americana confere ao Congresso o “poder da bolsa” (“power of the purse”), vedando qualquer gasto do Tesouro sem autorização legislativa — materializando o princípio da legalidade. Esse princípio é reforçado pelo “Antideficiency Act” (ADA), lei do século XIX que veda a criação de obrigações financeiras por parte de entidades federais sem dotação orçamentária expressa.[5] Este mecanismo exige que o Executivo se submeta anualmente ao escrutínio Legislativo para financiar suas operações. Quando o rigor financeiro encontra a polarização política, o processo orçamentário transforma-se em um obstáculo difícil de ser transposto.
Não se trata de um fenômeno novo. Os shutdowns norte-americanos fazem parte da própria história das finanças públicas do país [6] e ocorrem com relativa frequência — como registrou Marcus Abraham neste mesmo espaço, em 2018, ao analisar o impasse do primeiro governo Trump[7]. Situação semelhante já havia ocorrido no governo Obama[8] e em outros períodos. No processo de aprovação do orçamento federal deste ano, o shutdown se repete, arrastando o país a uma paralisação que já dura cinco semanas, afeta mais de 700 mil servidores e causa prejuízos bilionários diários.[9] O Estado norte-americano, que — assim como o brasileiro — não pode gastar sem autorização legal, converte a divergência política em verdadeira paralisia institucional.
No Brasil não se verificam shutdowns como os americanos, e isso se deve basicamente a um “jeitinho brasileiro” incorporado por tradição à nossa legislação.
Nosso sistema de planejamento orçamentário, constituído pelo “tripé legal” do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA) criou mecanismos para antecipar e neutralizar impasses. O principal deles, e fundamental para evitar a paralisação administração em caso da não aprovação do orçamento, é a inserção na LDO de dispositivo que autoriza a execução provisória do orçamento em caso de não aprovação tempestiva, e que tem sido sistematicamente renovado nas LDO de todos os entes federados. Caso a Lei Orçamentária Anual (LOA) não seja sancionada até o início do exercício financeiro[10], a própria LDO, que é norma de vigência temporária, assegura a execução provisória do orçamento. Esta é a chamada “regra dos duodécimos”, que autoriza o Executivo a despender, mensalmente, até 1/12 do valor previsto no projeto de lei para despesas correntes e inadiáveis. Esse mecanismo de prudência fiscal atua como uma “válvula de continuidade” que impede o colapso. O Estado mantém suas obrigações essenciais, pagando servidores e custeando serviços.
O art. 70 da LDO federal 2025 (Lei Federal 15.080, de 30.12.2024) prevê que “Na hipótese de a Lei Orçamentária de 2025 não ser publicada até 31 de dezembro de 2024, as programações constantes do Projeto de Lei Orçamentária de 2025 poderão ser executadas” nas situações que especifica. A LDO 2026, que deveria ter sido aprovada até dia 17 de julho, continua em tramitação, reiterando o atraso já ocorrido nos anos anteriores. Em geral os demais entes federados estabelecem regras mais simples, como é o caso da LDO do Estado de São Paulo para 2026, já aprovada (Lei Estadual 18.178, de 16.7.2025), dispondo que “Não sendo encaminhado o autógrafo do projeto de lei orçamentária anual até a data de início do exercício de 2026, fica o Poder Executivo autorizado a realizar (sic) a proposta orçamentária até a sua conversão em lei, no limite de até 1/12 (um doze avos) em cada mês (art. 64).
Outros mecanismos previstos na legislação brasileira — que poderiam, e deveriam, impor consequências mais severas ao funcionamento da administração pública, conferindo maior seriedade, segurança e credibilidade ao sistema de planejamento e ao processo orçamentário — simplesmente não têm funcionado, tornando-se verdadeira “letra morta” do nosso ordenamento jurídico. É o caso, por exemplo, do art. 57, § 2º, da Constituição, que veda o recesso legislativo sem a prévia aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Essa norma, que define as metas e prioridades para o exercício seguinte e atua como elo entre o planejamento plurianual (PPA) e a Lei Orçamentária Anual (LOA), vem sendo reiteradamente descumprida: há vários anos, a LDO federal é publicada com atraso, sem qualquer consequência institucional.
Isso não significa que o Brasil seja um exemplo de eficiência fiscal. O problema nacional tem outra natureza: marcada por crônica indisciplina orçamentária, deficiências de planejamento e a aprovação recorrente de orçamentos baseados em premissas macroeconômicas fictícias — com receitas superestimadas e despesas subavaliadas.
No Brasil, o debate raramente se concentra na autorização para gastar — assegurada pela regra da continuidade —, mas sim na qualidade, sustentabilidade e transparência desse gasto, como demonstram as controvérsias em torno do teto de gastos e das emendas parlamentares.
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Enquanto o sistema norte-americano privilegia o controle do Legislativo sobre o Executivo — a ponto de provocar, em certas circunstâncias, a paralisia da administração —, o Direito Financeiro brasileiro valoriza a continuidade administrativa.
A experiência brasileira é menos heroica, mas mais funcional, pois impede que a máquina pública se torne refém de impasses conjunturais. No entanto, a ausência de uma cultura institucional de levar a sério as normas de Direito Financeiro compromete a efetividade do sistema de planejamento e controle das contas públicas — o que enfraquece a responsabilidade fiscal e dificulta a consolidação de uma gestão verdadeiramente responsável.
[1] Shutdown causa atrasos em mais de 2.700 voos nos EUA. Poder360, publicada em 27.10.2025 (https://www.poder360.com.br/poder-internacional/shutdown-causa-atrasos-em-mais-de-2-700-voos-nos-eua/).
[2] Lembrando que nos EUA o orçamento tem período diferente do brasileiro, iniciando-se em 1o de outubro e terminando em 30 de setembro: “The fiscal year of the Treasury begins on October 1 of each year and ends on September 30 of the following year. Accounts of receipts and expenditures required under law to be published each year shall be published for the fiscal year” (31 U.S. Code § 1102 – Fiscal year).
[3] https://www.pgpf.org/article/a-brief-history-of-us-government-shutdowns-and-why-other-countries-do-not-have-them/
[4] Vide nota de rodapé 1.
[5] https://www.gao.gov/legal/appropriations-law/resources
[6] A Brief History of U.S. Government Shutdowns, por Peter G. Peterson Foundation (https://www.pgpf.org/article/a-brief-history-of-us-government-shutdowns-and-why-other-countries-do-not-have-them/).
[7] Shutdown e democracia orçamentária. Coluna Jota, publicada em 01.02.2018 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/shutdown-e-democracia-orcamentaria).
[8] What services are affected when the US government shuts down. The Guardian, Tue 1 Oct 2013 (https://www.theguardian.com/world/2013/sep/29/us-government-shutdown-services-affected?).
[9] https://www.infomoney.com.br/mundo/22-dias-paralisacao-do-governo-dos-eua-se-torna-a-segunda-mais-longa-da-historia/
[10] Que, no caso brasileiro, diferentemente do americano, é dia 31 de dezembro de cada ano, em face do disposto no art. 34 da Lei 4.320/1964: “O exercício financeiro coincidirá com o ano civil”.