O “formalismo moderado” é princípio contemporâneo que vem ganhando cada vez mais espaço no âmbito das licitações públicas. Irmão do princípio processualista da “instrumentalidade das formas”, segundo o qual a forma não se sobrepõe à finalidade do ato, ele busca assegurar que a regularidade procedimental da licitação seja instrumento da boa decisão administrativa, e não um fim em si mesma.
Em maio de 2021, um mês depois da publicação da nova lei de licitações, mas julgando processo instaurado sob a égide da Lei 8.666/93, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu importante orientação que passou a ser um dos precedentes mais citados no universo das licitações. No Acórdão 1211/2021, decidiu que:
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“(…) a vedação à inclusão de novo documento, prevista no art. 43, §3º, da Lei 8.666/1993 e no art. 64 da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, que não foi juntado com os demais comprovantes de habilitação e/ou da proposta, por equívoco ou falha, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.”
(TCU; Acórdão 1211/2021-Plenário; Relator: Walton Alencar Rodrigues; Data: 26/05/2021)
A lógica da orientação é compreensível — e, em parte, louvável: evitar que falhas meramente instrumentais afastem propostas vantajosas para a Administração.
O problema é que, desde então, esse precedente tem sido invocado com frequência por licitantes que descumprem prazos preclusivos para apresentar documentação essencial à habilitação ou à proposta; em alguns casos, tem servido de amparo para decisões de comissões de licitação que testam os limites do razoável, por vezes autorizando a substituição completa de atestados de capacidade técnica, a inclusão de novos documentos em fase recursal e até mesmo a reabertura completa de etapas procedimentais sob o argumento de “diligência”.
O entendimento do Acórdão 1211/2021 jamais pretendeu tamanha amplitude. O que se pretendeu combater foi o formalismo exacerbado que pautou as licitações em décadas passadas, mas preservando ainda com algum grau de razoabilidade as regras procedimentais.
A leitura do artigo 64 da Lei nº 14.133/2021 tratou expressamente do tema e impôs limites objetivos ao saneamento de falhas, sem margem para flexibilização ilimitada:
“Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:
I – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;
II – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.”
Como se vê do texto legal, ele não dá margem para a ampliação que alguns intérpretes têm conferido ao precedente do TCU. A lei foi clara e delimitou o saneamento como providência de caráter excepcional, cabível apenas para suprir omissões ou inconsistências formais em documentos já apresentados, e não como instrumento de substituição ou de reabertura de fases procedimentais.
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Ao comentar o entendimento do TCU, o professor Victor Aguiar Jardim de Amorim, que foi um dos integrantes da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações do Senado Federal, responsável pela elaboração do projeto que deu origem à Lei 14.133/2021, observa que a menção ao dispositivo da nova lei foi feita apenas em caráter de “obiter dictum” no voto do relator Ministro Walton Alencar Rodrigues.
O professor complementa ainda que, conforme a nova lei, a possibilidade de juntada de documento em sede de diligências não se confunde com uma “porta sempre aberta para apresentação de documentos a qualquer tempo, sob a genérica alegação de ‘esquecimento’, ‘equívoco’ ou ‘falha’ do licitante, termos assaz abstratos e de difícil verificação objetiva diante da dinâmica característica dos procedimentos licitatórios” [1].
Ou seja, o saneamento não pode ser usado para corrigir deficiências estruturais da habilitação, em desrespeito aos marcos preclusivos previstos em lei.
A ideia de que “o meio não prevalece sobre o fim” não autoriza que se desprezem as formas essenciais que garantem isonomia, impessoalidade e vinculação ao edital. Até porque o formalismo “moderado” não se confunde com ausência de formalidade; e as decisões administrativas não podem ser sempre casuísticas.
Há ainda que se considerar o efeito colateral da flexibilização ilimitada: o potencial incentivo perverso criado no comportamento dos licitantes, que passam a negligenciar a necessidade de preparar de forma diligente e responsável suas propostas. Afinal: se sempre será possível corrigir, é mais fácil participar do certame de qualquer jeito para, depois, se faltar algo, corrigir em sede de diligência.
No limite, cria-se uma cultura de desleixo estratégico, em que a falta de cuidado é compensada pela expectativa de benevolência administrativa. E, paradoxalmente, a tentativa de tornar o procedimento mais eficiente acaba por torná-lo mais lento, litigioso e imprevisível, com o prolongamento de fases recursais com questionamentos sobre inclusão de documentos novos.
A possível alternativa para esse dilema pode ter sido dada pelo Enunciado nº 10 do Conselho da Justiça Federal, aprovado no Simpósio de Licitações e Contratos da Justiça Federal de 2022:
“A juntada posterior de documento referente à comprovação dos requisitos de habilitação de que trata o inciso I do art. 64 da Lei n. 14.133/2021 contempla somente os documentos necessários ao esclarecimento, à retificação e/ou complementação da documentação efetivamente apresentada/enviada pelo licitante provisoriamente vencedor, nos termos do art. 63, inciso II, da NLLCA, em conformidade com o marco temporal preclusivo previsto no regulamento e/ou no edital.” [2]
Ao remeter à conformidade com o regulamento ou com o próprio edital, o enunciado sugere que esses instrumentos assumam papel normativo mais ativo, disciplinando, de forma objetiva e minuciosa, hipóteses de saneamento de falhas documentais, de modo a conferir previsibilidade e isonomia à utilização desse expediente.
O ideal é que o edital discipline com clareza:
quais tipos de falhas podem ser saneadas, desde que não alterem a substância/estrutura da habilitação;
quais documentos podem ser complementados ou atualizados;
em que fase e por quem a diligência poderá ser determinada;
e, sobretudo, quais falhas serão consideradas insanáveis, por afetarem o mérito da proposta ou a própria igualdade entre os licitantes.
A previsibilidade confere segurança jurídica ao processo e reduz o espaço para discricionariedades que, na prática, têm sido responsáveis por decisões casuísticas e contraditórias entre comissões de licitação.
O desafio das licitações contemporâneas não é escolher entre a forma e a substância, mas reconhecer que ambas são indispensáveis para a legitimidade do processo. O formalismo moderado é uma ferramenta útil, desde que manejada com parcimônia e dentro de parâmetros normativos claros.
A verdadeira modernização do regime licitatório não está em abrir exceções, mas justamente em eliminar o casuísmo e a insegurança jurídica quanto às regras do jogo. Só assim será possível conciliar o ideal de eficiência com a integridade procedimental — e garantir que o formalismo seja “moderado”, mas sem deixar de ser “formal”.
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[1] AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e contratos administrativos: teoria e jurisprudência. – 4. ed. – Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2021, p. 177.
[2] 1º Simpósio de Licitações e Contratos da Justiça Federal: Enunciados Aprovados / Conselho da Justiça Federal. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/licita-contat-jf