Operações “de guerra” em comunidades do Rio de Janeiro não são novidade, mas a escala da operação Contenção, que deixou mais de 130 pessoas mortas na terça-feira (28/9), levou a novas cobranças nacionais e internacionais diante da leniência histórica do Estado brasileiro com extermínios perpetrados por forças de segurança.
A operação foi realizada pelo governo estadual do Rio de Janeiro nos complexos do Alemão e da Penha. Os números oficiais inicialmente divulgados foram de 64 mortos, mas moradores reuniram pelo menos 70 outros corpos na Praça São Lucas, na Penha, elevando o total para mais de 130 pessoas. Os corpos tinham ferimentos a bala, facadas, alguns estavam mutilados e um estava decapitado. Na quarta-feira (29/10), a Polícia Civil atualizou o número oficial para 119 mortos.
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Como comparação, ao longo de todo o mês de setembro, 91 pessoas morreram ao serem baleadas em todo o estado, 44 delas durante operações policiais, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado.
O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH) disse estar “horrorizado” com a operação de terça-feira. “Relembramos às autoridades suas obrigações sob o Direito Internacional dos direitos humanos e instamos a realização de investigações rápidas e eficazes”, disse o braço da ONU na terça.
Na quarta-feira, o alto comissário, Volker Türk, afirmou que o Brasil “precisa romper o ciclo de brutalidade extrema e garantir que as operações de segurança pública estejam em conformidade com os padrões internacionais sobre o uso da força.”
“Compreendo plenamente os desafios de lidar com grupos criminosos violentos e organizados como o Comando Vermelho”, disse Türk. “No entanto, a longa lista de operações que resultam em muitas mortes – que afetam desproporcionalmente pessoas negras – levanta questões sobre a forma como essas incursões são conduzidas.”
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, fez um parecer com uma lista de esclarecimentos devidos pelo governo do estado, especialmente se foram respeitadas as determinações do STF feitas no âmbito da ADPF 635. O STF estabeleceu na ação, conhecida como ADPF das Favelas, diretrizes para a atuação das forças de segurança para reduzir a letalidade policial. Entre elas, a proporcionalidade do uso da força, atuação da polícia técnico-científica, o uso de câmeras nos uniformes e nas viaturas, a presença de ambulância, entre outros.
A entidade internacional de direitos humanos Human Rights Watch afirmou que a operação foi uma “grande tragédia” e afirmou que o Ministério Público deve investigar as circunstâncias de cada morte e “as decisões das autoridades do RJ que levaram a uma operação policial que foi um desastre”.
Em um julgamento sobre violência policial no Paraná nesta quarta, o ministro Flávio Dino afirmou que não se pode esperar uma resposta de “lei nova” ou “decisão judicial”.
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“No terreno da segurança pública, às vezes grassam os discursos fáceis, principalmente em momento de crise. A ideia de que basta fazer lei nova que tudo se resolve, ou decisão judicial resolve o problema e, como sabemos que as respostas estão em outro território”, afirmou Dino, que classificou como trágica a situação no Rio de Janeiro.”
O ministro Gilmar Mendes também comentou a operação. “Devemos todos estar atentos a criação de uma jurisprudência que reconheça a necessidade eventual de ações policiais, mas que ao mesmo tempo não comporte abusos muito menos violações de direitos fundamentais”, afirmou o ministro.
Responsabilização por execuções
O Brasil tem um histórico de pouca agilidade e eficiência na responsabilização dos envolvidos em extermínios cometidos por forças de segurança.
Um exemplo é o massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, quando 111 detentos foram mortos pela polícia em menos de 30 minutos, na maior chacina em um presídio no país. Passaram-se mais de 20 anos até o julgamento e condenação de 74 policiais militares por júri popular entre 2013 e 2014. Pouco tempo depois, no entanto, em 2016, as condenações foram revertidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e só em 2021 foram restabelecidas pelo Superior Tribunal de Justiça.
Logo depois, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) indultou os condenados. Em janeiro de 2023, uma liminar concedida pela então ministra do STF Rosa Weber suspendeu os efeitos do indulto, mas o tema ainda não teve julgamento de mérito.
O julgamento da ADI 7330, que questiona o indulto, está parado no STF até hoje — o caso chegou a ser colocado em pauta em 17 de setembro, mas não foi julgado.
As circunstâncias da operação Contenção são diferentes do massacre no Carandiru, onde os detentos cumpriam pena sob custódia do Estado.
Segundo o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Carandiru, as mortes não decorreram de ações em legítima defesa, nem para desarmar os detentos, uma vez que as armas de que disponham, de fabricação caseira, haviam sido depostas no pátio quando a polícia entrou no presídio.
Na operação no Rio de Janeiro, o governo afirmou que houve resistência do Comando Vermelho. Agora cada uma das mortes terá de ser analisada para verificar se foi um caso de confronto ou de execução por parte das forças policiais.
No entanto, apesar das diferenças entre os dois episódios, o número de mortos é comparável – com pelo menos 134 pessoas mortas, incluindo 4 policiais, a operação no Rio de Janeiro ultrapassou a chacina de 1992.
Os dois episódios foram comparados pela presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Dani Monteiro, que afirmou que a operação desta semana ultrapassou o massacre do Carandiru se tornando “a maior violação cometida pelo Estado na história da nossa redemocratização”.
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A investigação do caso do Carandiru foi dificultada, diz o relatório da CIDH, devido a ações tomadas pela polícia logo após o crime para “destruir as provas que pudessem servir para identificar os policiais responsáveis de cada morte em particular e confundir a evidência das circunstâncias em que ocorreram”.
Na operação no Rio de Janeiro, embora não tenham sido registradas ações para destruição de provas, as áreas das mortes nos complexos de favelas não foram isoladas logo após o episódio, ainda que a polícia tenha mantido a ocupação na Penha e no Alemão. Além de ser determinada pela legislação, a preservação dos locais de crimes é uma das determinações do Supremo da ADPF das Favelas.
A falta de isolamento levou à contaminação dos locais de crime, com moradores arrastando os corpos que estavam na mata para uma praça central na Penha para facilitar a identificação pelos familiares. A Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que vai investigar a movimentação dos corpos, mas não deu esclarecimentos sobre por quê os locais não foram preservados pela própria polícia.
O relatório da CIDH concluiu também, no caso do Carandiru, que diversas instâncias falharam na investigação dos fatos – oito entidades oficiais, seis do estado de São Paulo e duas do governo federal abriram inquéritos sobre o massacre.
“Os órgãos oficiais do estado de São Paulo admitiram que tinha havido excessos, mas em geral os consideraram reações previsíveis ante a ação violenta dos detentos”, diz o relatório. “Em geral tenderam a eximir a polícia de culpa, considerando que o planejamento e operação policial estavam corretos. A investigação do Poder Judicial eximiu de culpa os juízes intervenientes, observando que realizaram suas tarefas de maneira adequada.”
No Rio de Janeiro, embora o governo tenha dito que o Ministério Público do Estado acompanhou a operação, ainda não foi divulgada nenhuma informação relativa a abertura de inquérito sobre a alta letalidade da polícia.
Em uma entrevista coletiva nesta quarta-feira, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor Santos, disse que as mortes foram um “dano colateral muito pequeno” e que “apenas quatro pessoas inocentes” morreram na operação.
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O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) pediram explicações ao governo fluminense e devem investigar o caso.
O MPF falou em “alta letalidade” e disse que existem “evidências de possíveis violações a tratados internacionais de direitos humanos e a preceitos constitucionais”.
Na quarta, a deputada estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ) afirmou que o Estado brasileiro “tem um longo lastro de julgamentos e condenações por violações de direitos humanos, exatamente em operações como a que ocorreu ontem”.
O Brasil tem 19 condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a maioria deles por episódios ocorridos após a redemocratização. Diversos deles são relativos à violência policial.
Entre eles, se destaca o caso Honorato e outros versus Brasil, no qual o país foi considerado internacionalmente responsável pela execução extrajudicial de doze pessoas pela Polícia Militar de São Paulo durante a operação Castelinho, em 2002.
Além da falta de “devida diligência e de garantias de prazo razoável nas investigações e nos processos penais iniciados” o Brasil também feriu o direito à verdade e a violou o cumprimento de decisões judiciais em relação às ações cíveis propostas pelos familiares das vítimas, diz a Corte IDH.