Senhoriagem não é lucro: os riscos da PEC 65 para o Banco Central do Brasil

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 65/2023 pretende alterar o regime jurídico do Banco Central do Brasil (BCB), conferindo-lhe o status de empresa pública. À primeira vista, sua justificativa adota o verniz da racionalidade econômica: pretende ampliar a autonomia do BCB, colocando no “centro da proposta” o uso das receitas de senhoriagem — isto é, a renda obtida pelo Estado em virtude de seu monopólio de emissão de moeda — para custear as próprias despesas da instituição.

No entanto, por trás dessa racionalidade aparente, a proposta legislativa incorre em equívocos conceituais e de política pública. Ao tratar o BCB como uma entidade empresarial, ela distorce sua natureza jurídico-política e compromete a transparência sobre o uso de uma das prerrogativas mais essenciais do Estado — o poder soberano de emitir moeda.

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Historicamente, em um regime de moeda metálica, a senhoriagem era a diferença entre o valor facial da moeda e seu custo de cunhagem. Com a adoção da moeda fiduciária por diferentes jurisdições, o conceito se amplia: a senhoriagem passa a ser a renda obtida pelo Estado em razão de seu monopólio de emissão, ou seja, o ganho que decorre da criação da moeda pública com custo quase nulo, lastreado por ativos que rendem juros.

Uma nota de cem reais custa centavos para ser produzida, mas representa um crédito do portador contra o BCB que não dá direito a nada além da própria nota. Em termos econômicos, é um passivo não remunerado, respaldado por ativos financeiros, como títulos públicos e reservas internacionais. No sentido estrito da senhoriagem, a diferença entre o custo zero de produção do papel-moeda e o rendimento desses ativos é a fonte estrutural de lucro de bancos centrais.

Em sentido mais amplo, esse raciocínio também se aplica à outra forma da moeda pública: as reservas compulsórias não remuneradas de bancos comerciais. Atualmente, a alíquota sobre depósitos à vista é de 21%, e esses recursos ficam imobilizados no BCB, sem juros. Assim, tanto a moeda física em circulação quanto as reservas compulsórias são fontes de senhoriagem.

Com base nas demonstrações financeiras do BCB, é possível estimar a senhoriagem em 2024. Somando o meio circulante e os depósitos compulsórios à vista, chega-se a R$ 396,4 bilhões da base monetária não remunerada. O BCB adquire títulos públicos e reservas internacionais — ativos em seu balanço que, em 2024, renderam respectivamente 10,41% e 28,05%. Considerando uma taxa média de 10,4% sobre instrumentos em moeda local (de forma a isolar a variação cambial e levando em conta que há regras específicas no direito brasileiro quanto à formação da reserva de resultado para operações cambiais), o rendimento anual equivale a aproximadamente R$ 40 bilhões — o fluxo de senhoriagem.

Além desse efeito, há um segundo componente: o “imposto inflacionário”, ou a erosão do poder de compra de quem mantém moeda pública sem remuneração. Com a inflação de 4,83% em 2024, esse efeito foi da ordem de R$ 19,1 bilhões. Somados ambos os mecanismos — o retorno sobre os ativos e o efeito inflacionário —, a senhoriagem total do Estado brasileiro alcançou algo em torno de R$ 60 bilhões, ou seja, 0,52% do PIB nacional (R$ 11,7 trilhões).

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Mas quem se apropria dessa renda? No Brasil, o artigo 21, VII, da Constituição Federal estabelece que compete à União emitir moeda, consagrando o poder de criação monetária como prerrogativa exclusiva do Estado soberano — poder intransferível em sua essência, cujo exercício é delegado ao banco central (conforme artigo 164 da Constituição). Em conformidade com esse princípio, a Lei Complementar nº 179/2021 e a Lei nº 13.820/2019 definem que o resultado positivo do BCB pertence à União. Portanto, quem se beneficia da senhoriagem é o Estado, não o BCB.

O BCB é apenas o agente operacional da soberania fiscal e monetária, convertendo o poder de emitir moeda em receita pública. Seu balanço não é o de uma empresa: suas “dívidas” — o papel-moeda em circulação e as reservas bancárias — são irresgatáveis, e a solvência do banco central decorre da capacidade do Estado de tributar e emitir títulos.

A PEC sustenta que o BCB, enquanto empresa estatal, de natureza jurídica privada, se financiará com suas próprias receitas de senhoriagem, como fazem “os mais importantes bancos centrais do mundo”. Mas o argumento repousa sobre um equívoco técnico e em uma estrutura de incentivos perigosa.

Um estudo publicado pelo Banco da Inglaterra, sobre as finanças de 70 bancos centrais, observa que as receitas de senhoriagem não estão explicitamente identificáveis em suas demonstrações financeiras. Elas estão diluídas no resultado global, na diferença entre ativos remunerados e passivos não remunerados. Ou seja, a senhoriagem é um fenômeno econômico, não uma rubrica contábil.

Transformar o BCB em entidade de natureza privada para gerir esse suposto lucro implicaria uma ficção contábil: criaria a ilusão de fonte própria de financiamento, quando, na verdade, todo ganho de senhoriagem é receita pública da União e, portanto, deve estar sujeito a controle orçamentário e parlamentar. Inclusive, o próprio Banco da Inglaterra, após deduzir os custos de emissão do papel-moeda, transfere ao Tesouro britânico o lucro resultante da diferença entre esses custos e o rendimento dos ativos em que aplica esses recursos — ou seja, a senhoriagem em sentido estrito.

Além de juridicamente inconsistente, a PEC traria dois riscos graves para o Estado brasileiro. Primeiro, a proposta introduz um risco significativo de distorção nos incentivos que orientam a política monetária. O BCB não é uma firma e não busca maximizar retornos, mas preservar a estabilidade da moeda e do sistema financeiro. A senhoriagem é uma consequência desse papel, não um objetivo per se.

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Se o BCB pudesse reter a senhoriagem como receita própria, entraria em conflito com seu mandato de estabilidade de preços. Em contextos de alta inflação, a emissão de moeda e a senhoriagem aumentam, ampliando os recursos da própria instituição. Ao atrelar suas receitas à criação de moeda, a PEC introduz um incentivo perverso que distorce a função essencial do BCB.

Em segundo lugar, a mudança legislativa abriria espaço para menor transparência: sob o regime empresarial, o BCB poderia reter parte de seus resultados, misturando lucros contábeis e recursos fiscais — uma zona cinzenta perigosa para sua governança, que fragiliza o controle democrático sobre o que é, em última instância, a moeda pública. Em países que seguem boas práticas, bancos centrais são autoridades monetárias, de natureza pública, não empresas estatais.

Emitir moeda é um dos principais atributos da soberania estatal. É o poder de criar poder de compra ex nihilo — uma função que pertence ao Estado e é apenas exercida por delegação constitucional ao BCB. Ainda que bancos centrais possuam personalidade jurídica própria, esta existe apenas para assegurar autonomia operacional, não patrimonial.

Converter a senhoriagem em fonte autônoma de financiamento seria como permitir que o Exército vendesse parte de sua monopolização da força para custear o quartel. Assim como a defesa nacional, a emissão monetária é uma função de soberania, e sua exploração financeira corroeria o princípio de que o poder público deve servir à sociedade — não a si mesmo.

A transformação do BCB em empresa deturpa esse modelo e mina o princípio de neutralidade fiscal que sustenta a credibilidade de autoridades monetárias. Adotar um regime jurídico privado obscurece a fronteira entre poder público e atividade econômica, entre soberania monetária e gestão patrimonial. A moeda, assim como o monopólio legítimo da força, é um instrumento de Estado — e não tem dono.

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