Lei dos Distratos e gol contra do STJ: insegurança e judicialização à vista

O recente julgamento do Recurso Especial nº 2.106.548/SP pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ocorrido em 2 de setembro de 2025, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, reacendeu um debate sensível ao setor imobiliário a respeito de eventual prevalência do Código de Defesa do Consumidor sobre a Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018, conhecida como a “Lei dos Distratos”. Como é de conhecimento, referida legislação alterou a Lei nº 4.591/64 e a Lei nº 6.766/79 para disciplinar a resolução do contrato de compra e venda por inadimplemento do adquirente.

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No caso concreto, o STJ analisou tema referente a resolução de contrato de compra e venda de lotes não edificados, firmado após a entrada em vigor da Lei nº 13.786/2018, cujo propósito recursal foi, essencialmente, analisar: (i) a prevalência ou não do CDC sobre a Lei nº 13.786/2018; e (ii) o momento que deve ocorrer a restituição dos valores pagos pelo adquirente na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de imóvel, diante das alterações promovidas pelo art. 32-A da Lei nº 6.766/1979, cuja redação é fruto da Lei dos Distratos.

Assim, decidiu o STJ por maioria que: (i) a Lei dos Distratos se limitou a alterar apenas as Leis nº 4.591/1964 e 6.766/1979, que tratam da incorporação imobiliária e do parcelamento do solo urbano, sem realizar qualquer alteração ou revogação de artigos do Código de Defesa do Consumidor, de modo que este deve prevalecer em eventual conflito; (ii) ao se tratar de relação de consumo, mesmo com relação a contratos celebrados após a Lei dos Distratos, os limites de retenção previstos devem ser compatibilizados com o Código de Defesa do Consumidor, de modo que a retenção dos valores pagos pelo adquirente não pode ultrapassar o percentual de 25%; e (ii) a restituição dos valores pagos ao adquirente somente após o término da obra ou de forma parcelada em relações de consumo consiste em uma prática abusiva, devendo os valores pagos serem restituídos de forma imediata, contrariando o disposto no art. 32-A, §1º, da Lei nº 6.766/1979.

O STJ utilizou de entendimentos jurisprudenciais e de súmulas do próprio STJ construídas anteriormente à entrada em vigor da Lei dos Distratos, em especial a Súmula 577 de 2013 e a Súmula 543 de 2015.

Destaca-se que a promulgação da Lei dos Distratos teve como propósito central promover um equilíbrio entre os interesses dos consumidores e das incorporadoras/loteadoras. A norma surgiu como resposta à necessidade de maior previsibilidade nos contratos imobiliários, estabelecendo parâmetros objetivos para retenções de valores, prazos de devolução e penalidades aplicáveis. Com isso, buscou-se conferir segurança jurídica ao setor, além de contribuir para a uniformização da jurisprudência e a redução da judicialização que sobrecarrega o Poder Judiciário.

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Tal entendimento, trazido recentemente pelo STJ, é preocupante e macula o artigo 2º, § 1º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, o qual prevê que a lei posterior revoga a anterior, “quando regule inteiramente a matéria de que tratava a normativa anterior”. Este é o caso da chamada “Lei dos Distratos”, que é posterior e mais específica em relação ao Código de Defesa do Consumidor, notadamente no que tange à delimitação da penalidade aplicável em caso de resolução contratual por parte do adquirente. O artigo 53 do CDC impõe a nulidade à cláusula que estabeleça a perda das prestações pagas em caso resolução contratual. Por sua vez, a Lei dos Distratos regulou, posteriormente, essa mesma matéria, voltando-se especificamente para os contratos de aquisição de imóveis decorrentes de incorporação e de loteamento. Ela estabelece novos limites específicos, os quais, diga-se de passagem, não são contrários à vedação de perda total das prestações, mas, inclusive, mais favoráveis ao consumidor

Ademais, a decisão do STJ vai ao encontro do princípio de que Lei especial, como é o caso da Lei dos Distratos, se sobrepõe à normativa geral, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, princípio este uníssono na nossa jurisprudência. Ora, a Lei dos Distratos foi pauta de ampla discussão social e veio para apaziguar a judicialização indiscriminada que ocorrera em tempos do mercado imobiliário em crise.

Não bastasse tais argumentos, o alicerce jurisprudencial e sumular da decisão é frágil se comparado com a Lei dos Distratos que é normativa validamente em vigor no cenário jurídico brasileiro. Espera-se que tal decisão seja isolada e que o STJ reveja a sua posição, vindo a prosperar o entendimento que em referida decisão, infelizmente, foi minoritário.

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A manutenção de entendimentos jurisprudenciais anteriores à nova legislação tende a criar insegurança na celebração de contratos de aquisição de unidades imobiliárias, o que pode desestimular o lançamento de novos empreendimentos e impactar negativamente o custo das unidades, dada a maior exposição das empresas do setor.

Embora a decisão proferida pelo STJ no REsp 2.106.548/SP não possua efeito vinculante, representa um sinal de alerta para o mercado imobiliário, que deve acompanhar com atenção os desdobramentos jurisprudenciais e avaliar os reflexos práticos dessa orientação. Espera-se que mais e mais posições doutrinárias se manifestem de forma contrária a fatídica decisão e que ventos de segurança jurídica soprem em direção ao STJ.

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