Este texto é uma versão reduzida de um artigo que integra o livro “Inteligência e ações estratégicas: o Ministério Público Federal diante das mudanças climáticas”, que será lançado pela iniciativa Diálogos pelo Clima nesta segunda-feira (27/10)
Durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill pronunciou uma frase que ficou marcada na história: “Este não é o fim, nem mesmo o começo do fim, mas talvez o fim do começo.” Ele se referia à Batalha de El Alamein, quando o avanço das forças aliadas sinalizava que, após anos de resistência e sacrifício, uma nova etapa começava.
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Na trajetória do controle socioambiental da pecuária no Brasil, também chegamos ao fim do começo. A fase inicial foi marcada pela consolidação de instrumentos de monitoramento, amadurecimento institucional e pelo consenso crescente sobre os deveres de diligência da indústria da carne.
O Programa Carne Legal, conduzido pelo Ministério Público Federal (MPF), tornou-se referência nacional e internacional ao demonstrar que é possível compatibilizar produção e legalidade, integrando dados públicos, auditorias independentes e parcerias técnicas para reduzir o desmatamento na Amazônia.
Agora, uma nova etapa se impõe. O desafio é ampliar o alcance desse modelo para outros biomas e integrar fornecedores indiretos à estratégia de monitoramento, elo ainda opaco da cadeia e peça essencial para assegurar a credibilidade da produção brasileira diante das exigências globais.
Às vésperas da COP30, em Belém, o Brasil ocupa posição de destaque e responsabilidade. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, marcada para novembro de 2025, será a vitrine mundial das promessas e contradições ambientais brasileiras. O país que abriga a maior floresta tropical do planeta é também o maior emissor de gases de efeito estufa da América Latina, com grande parte das emissões associadas ao desmatamento ligado à pecuária. Segundo o MapBiomas, mais de 90% das áreas desmatadas na Amazônia foram convertidas em pastagens[1]. A mudança no uso da terra segue como a principal fonte de emissões brasileiras, seguida pela agropecuária.
Nesse contexto, o Brasil precisa demonstrar resultados concretos, não apenas compromissos. E o novo regulamento europeu sobre produtos livres de desmatamento (EUDR) redefine o cenário global. A partir de 30 dezembro de 2025, grandes e médias empresas deverão comprovar que carne e couro exportados não estão associados a desmatamento ocorrido após 31 de dezembro de 2020, ainda que seja considerado “legal” pela lei brasileira. O recado é claro: não basta cumprir a lei nacional; é preciso atender a padrões globais de sustentabilidade.
O regulamento exige que cada produto seja livre de desmatamento, produzido em conformidade com a legislação do país de origem e acompanhado de uma declaração de due diligence que indique a geolocalização de todas as áreas de produção.
Na prática, isso significa rastrear não apenas os fornecedores diretos, mas também os indiretos (as fazendas de cria e recria que alimentam o sistema antes da engorda e do abate). Essa é, hoje, a principal lacuna da cadeia da carne brasileira.
Um dos entraves estruturais é a ausência de integração entre as bases de dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das Guias de Trânsito Animal (GTAs), geridas por órgãos estaduais distintos e com diferentes padrões de interoperabilidade. A falta de vinculação entre esses registros impede a construção de uma linha contínua e verificável de rastreabilidade dos animais, dificultando a identificação de práticas ilegais, como a lavagem de gado.
O sistema atualmente utilizado no país baseia-se na rastreabilidade por lote, o que gera incertezas crescentes à medida que se avança para os fornecedores indiretos. A cada transação comercial, há uma nova agregação de animais de origens diversas, fragmentando o histórico de movimentação. A ausência de rastreabilidade integral ameaça a competitividade do Brasil no mercado europeu e, mais amplamente, a credibilidade da pecuária nacional diante de consumidores e investidores.
Em resposta a essas pressões, o Ministério da Agricultura e Pecuária lançou, em 2024, o Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB)[2]. O objetivo é instituir, até 2032, a identificação obrigatória de todos os animais no país. A proposta é relevante e necessária, mas o horizonte temporal preocupa. O cronograma de oito anos contrasta com a urgência ambiental e com o ritmo do desmatamento. O plano tem foco estritamente sanitário, sem incorporar medidas específicas de controle socioambiental, nem prever a integração entre as bases de GTA e CAR, condição essencial para o monitoramento ambiental efetivo.
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Em maio de 2025, o Ministério Público Federal divulgou os resultados do segundo ciclo unificado de auditorias na cadeia da pecuária da Amazônia Legal, referentes às compras de gado realizadas em 2022[3]. Entre os frigoríficos signatários do TAC da Carne Legal que realizaram auditorias próprias, o índice de irregularidades não ultrapassou 4%. Já entre as empresas que não se submeteram a auditoria independente e tiveram seus dados analisados por verificações automáticas, a taxa chegou a 52%. A diferença é expressiva: as empresas não auditadas apresentaram taxa de irregularidade treze vezes maior.
Em análise piloto no Pará, apenas 38% dos fornecedores indiretos de nível 1 estavam em conformidade. Mais de 6 milhões de cabeças de gado apresentaram potenciais irregularidades, como desmatamento (38%), ausência de correspondência com o CAR (35%) ou presença em áreas embargadas (23%). A falta de correspondência entre GTAs e CARs é o ponto crítico: sem ela, é impossível verificar a regularidade ambiental das propriedades. Ciente dessa lacuna, o MPF planeja incluir formalmente os fornecedores indiretos nas auditorias a partir de 2026.
O início do monitoramento dos fornecedores indiretos marca o fim de uma etapa e o começo de outra. Se Churchill estivesse observando a Amazônia hoje, talvez dissesse o mesmo que em 1942: este não é o fim, nem mesmo o começo do fim, mas, quem sabe, o fim do começo.
A experiência do Ministério Público Federal à frente do Programa Carne Legal revela um caminho possível para o enfrentamento dos desafios ambientais mais complexos do país. O sucesso dessa atuação reside na combinação entre fortalecimento institucional, uso estratégico de dados e capacidade de articulação com diversos atores do Estado e da sociedade civil.
O Diálogos pelo Clima, uma iniciativa desenvolvida pelo Funbio, traduz na prática esse novo paradigma de integração entre ciência, sistema de justiça, setor produtivo e sociedade civil, fortalecendo a agenda climática brasileira e apontando caminhos para um futuro em que desenvolvimento e conservação caminhem lado a lado.
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[1] Disponível em https://brasil.mapbiomas.org/2024/10/03/mais-de-90-do-desmatamento-da-amazonia-e-para-abertura-de-pastagem/. Acesso em 23/10/2025.
[2] Disponível em https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/camaras-setoriais-tematicas/documentos/camaras-setoriais/carne-bovina/2025/72a-ro-18-03-2025/pnibv-planejamento-estrategico-2025-2032.pdf. Acesso em 24/10/2025.
[3] Disponível em https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/carne-legal-frigorificos-signatarios-do-tac-na-amazonia-tem-13-vezes-menos-irregularidades-que-os-demais. Acesso em 24/10/2025.