Antes da tarifa zero, a melhoria regulatória

O debate sobre a tarifa zero no transporte público urbano ganha, cada vez mais, ares de política nacional. Em diferentes cidades, a gratuidade total ou parcial das passagens vem sendo experimentada como instrumento de inclusão social, de redução da dependência do automóvel e de incentivo à reocupação dos centros urbanos.

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É um caminho promissor, sobretudo quando visto à luz das políticas de transição ecológica e de justiça urbana. Em outro artigo publicado aqui no JOTA, defendi que a implementação do passe livre deve começar pelas cidades pequenas e médias, onde a estrutura de transporte é menos complexa e a política pode gerar impacto social imediato. Nessas localidades, não há a necessidade de sustentar sistemas de alta capacidade — como trens e metrôs. Uma expansão indiscriminada da gratuidade nas grandes metrópoles poderia comprometer recursos hoje destinados a investimentos.

 

Mas há um problema que antecede qualquer expansão em escala nacional do passe livre: a precariedade da regulação do transporte coletivo no Brasil. Antes de se discutir o tamanho do subsídio federal ou o desenho de um fundo nacional de custeio, é preciso reconhecer que, nas condições institucionais atuais, o país não tem capacidade suficiente para regular de modo eficaz o sistema que pretende subvencionar. Sem a reforma do sistema, a subvenção total do transporte público pode significar uma simples transferência de renda em prol das empresas de ônibus, sem a devida maximização dos ganhos sociais e ambientais.

Além disso, uma regulação deficiente — incapaz de vincular a remuneração dos operadores a metas de investimento, inovação tecnológica e sustentabilidade — tende a afastar os melhores prestadores de serviço. A ausência de previsibilidade e de incentivos claros, por exemplo, pode inviabilizar projetos de eletrificação das frotas e desestimular empresas dispostas a operar sob padrões mais altos de desempenho e transparência.

Um sistema de baixa capacidade regulatória

Em boa parte dos municípios brasileiros não há equipes técnicas estáveis e qualificadas para planejar, contratar e fiscalizar o transporte coletivo. Não é raro faltarem dados confiáveis sobre custos operacionais, demanda e qualidade do serviço.

A assimetria de informação entre poder público e operadores privados é um traço marcante do setor. Os contratos falham nas obrigações relativas ao estabelecimento de indicadores auditáveis ou metas de desempenho claras.

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Essa deficiência regulatória também compromete a capacidade de planejar investimentos de longo prazo — como a eletrificação das frotas — e de atrair operadores tecnicamente qualificados. Sem regras estáveis e incentivos adequados, nem sempre os melhores prestadores são selecionados.

Na ausência de capacidade fiscalizatória, o poder público acaba gerindo mal os aspectos econômico-financeiros dos contratos. A formação da tarifa fica opaca.

Subvencionar sem reformar a regulação é perda de oportunidade

A tarifa zero, se implementada sem instrumentos robustos de regulação, pode reproduzir os vícios de outras políticas de subvenção mal calibradas. Sem parâmetros técnicos e metas mensuráveis, subsidiar integralmente a tarifa pode apenas ampliar margens de lucro ou ineficiências. A ausência de monitoramento de desempenho — pontualidade, frequência, conforto, acessibilidade — impede saber se o serviço está de fato melhorando.

A fragilidade regulatória não apenas aumenta o risco fiscal, mas também desestimula a inovação. Operadores modernos, afins aos objetivos de renovação tecnológica ou metas ambientais dificilmente competem em igualdade de condições quando a regulação é opaca e imprevisível. Assim, a má regulação não apenas desperdiça recursos, mas empobrece o próprio mercado

A prioridade, portanto, deve ser o fortalecimento institucional e regulatório do setor. Esse aprimoramento é indispensável mesmo que não haja tarifa zero total, porque o volume de recursos públicos destinados a sustentar o transporte coletivo já cresce de forma contínua.

Nos últimos anos, vem crescendo o número de sistemas urbanos que passaram a depender fortemente de subsídios para manter a operação. Isso significa que o problema da eficiência do gasto público já está posto, independentemente de uma política de passe livre nacional.

Assim, o aprimoramento regulatório é urgente não apenas como preparação para o futuro, mas como condição de racionalidade fiscal no presente.

A superação da atual assimetria de informação entre operadores e poder público exige não apenas mais transparência, mas também mecanismos de remuneração e fiscalização que alinhem os incentivos econômicos à eficiência do serviço.

Alguns caminhos se mostram não só promissores mas também algo urgentes:

(i) Contratos de concessão e permissão com metas de desempenho objetivas, com bônus e penalidades vinculadas a indicadores de qualidade, pontualidade e eficiência, e instrumentos de mensuração contínua baseados em dados operacionais e indicadores de demanda, que permitam o acompanhamento permanente dos resultados e a verificação do cumprimento das metas.

(ii) Adoção de formas de remuneração baseadas em quilômetros rodados, deixando de tratar o usuário como elemento de custo e incentivando o operador a focar na regularidade, cobertura territorial e qualidade, inclusive em horários e áreas de menor demanda.

(iii) Estabelecimento de prazos contratuais mais curtos e escalonados, permitindo a renovação periódica de parte das linhas — por exemplo, 20% a cada ano — para estimular a concorrência contínua e criar um mercado dinâmico de operadores capazes de cumprir metas de desempenho;

(iv) Transparência e controle social, com padronização das informações econômico-financeiras e operacionais, permitindo comparabilidade e  monitoramento dos critérios de desempenho.

Essas medidas não exigem aporte fiscal, mas sim capacidade técnica e compromisso político. E é justamente nesse ponto que o papel da União pode ser decisivo.

O papel federal: coordenação por meio de normas de referência e condicionalidades

A experiência recente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) oferece um modelo valioso. No saneamento, a ANA passou a editar normas de referência nacionais, que estabelecem diretrizes regulatórias mínimas a serem observadas pelos poderes concedentes estaduais e municipais como requisito para o acesso a recursos federais. Arranjos semelhantes existem em muitas outras políticas públicas nacionais — como saúde, educação, habitação e assistência social — nas quais o apoio financeiro da União depende do cumprimento de parâmetros técnicos e regulatórios

Essa arquitetura institucional poderia inspirar o transporte público urbano. A criação de normas federais de referência para mobilidade urbana — definindo padrões mínimos de transparência, contabilidade, governança e desempenho — seria um passo decisivo para harmonizar práticas e reduzir a assimetria regulatória entre municípios.

A adoção dessas normas poderia ser um pré-requisito para que municípios recebam recursos federais destinados ao custeio ou à compensação tarifária. Com isso, o incentivo fiscal seria acompanhado de um incentivo regulatório. Quem quiser o subsídio deve antes demonstrar capacidade de controle e transparência.

Essa condicionalidade evita que o programa federal se converta em mera transferência de recursos a sistemas mal geridos. Em vez de um cheque em branco, o governo federal forneceria uma espécie de selo de qualidade regulatória — algo comparável ao que se busca construir no saneamento, setor em que a observância das normas de referência sinalizam credibilidade institucional.

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A União pode exercer papel de coordenação e indução, sem substituir o protagonismo municipal, oferecendo suporte técnico, sistemas de dados compartilhados e plataformas de monitoramento. O aprimoramento do Sistema Nacional de Informações sobre Mobilidade Urbana, para que ele seja um efetivo produtor de insumos regulatórios, seria um passo importante nessa direção.

Conclusão: regulação para aumentar a efetividade da despesa pública

Antes de distribuir subsídios, o país precisa aprender a regular, medir e cobrar resultados. Sem regulação, o risco é repetir velhos erros: políticas bem-intencionadas, mas capturadas por agentes mais ágeis do que o Estado que as financia.

O passe livre nacional só fará sentido se vier acompanhado de uma verdadeira reforma regulatória do transporte urbano, com transparência, indicadores e controle social. A União tem competência legal e instrumentos administrativos para iniciar essa mudança desde já.

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