Um voto no apagar das luzes: a mão-morta judicial e uma nova dimensão da ministrocracia

Em 2008, no aniversário de 20 anos de nossa Constituição, Oscar Vilhena Vieira nos brindou com aquele que talvez seja seu mais famoso trabalho: Supremocracia.[i] Em pouco mais de 20 páginas, Vilhena foi capaz de explicar como e por que o Supremo Tribunal Federal contava com competências superlativas. Assim como Jano, o deus de duas faces, o processo de expansão das atribuições do Supremo conta com duas dimensões. De um lado, a legislativa, que, de forma deliberada, escolheu a Corte como locus de resolução de um sem-número de problemas; do outro, a judicial, que, munida de um texto constitucional pretensamente ubíquo,[ii] inflou ainda mais a presença do Judiciário.

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Dez anos depois disso, agora com a Constituição deixando seus anos de juventude para trás, Diego Werneck e Leandro Molhano deram uma nova dimensão à tese de Vilhena. Deixando de lado as disfuncionalidades da Corte enquanto instituição – foco de Supremocracia –, os autores optaram por investigar como seus ministros, de forma individual, contornavam diretrizes constitucionais que demandam decisões colegiadas. A esse fenômeno deram o nome ministrocracia.[iii]

Caracterizada pelo abuso do individualismo togado, a ministrocracia se manifesta de diversas maneiras. Werneck e Molhano citam como exemplos as liminares monocráticas – por vezes não referendadas –, os pedidos de vista como instrumento de veto e as declarações públicas feitas pelos ministros.

A literatura sobre a ministrocracia foi expandida nas mãos de Miguel Godoy, que identificou novos problemas oriundos do individualismo e da fragmentação. Um desses problemas é fruto de um sincretismo interpretativo usado par autorizar a concessão de medidas cautelares monocráticas em sede de ADI, ainda que sem uma previsão clara ou expressa nesse sentido.[iv] Outro problema identificado por Godoy é o fracionamento de poder decisório em 18 diferentes instâncias, desde o poder individual de cada ministro, até o plenário físico, passando pelas turmas e plenário virtual.[v]

Na noite da última sexta, entretanto, a ministrocracia parece ter se materializado de uma nova forma. No apagar das luzes de sua aposentadoria, o ministro Luís Roberto Barroso juntou seu voto ao julgamento do caso sobre a descriminalização do aborto. Em pouco mais de duas folhas, Barroso aderiu ao voto da – agora aposentada – ministra Rosa Weber, reproduzindo uma prática recorrente em outras Supremas Cortes, a exemplo da norte-americana. Ainda que o voto possa merecer elogios pelo compromisso com a concisão, qualquer observação seria ofuscada pelas críticas que o comportamento reclama.

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É verdade que Barroso não inaugurou esse comportamento. Vários ministros apresentaram votos em casos – de pequena e de grande relevância – antes de deixarem a Corte, mas Barroso fez isso de uma forma particularmente problemática. Nesse ponto, o agir estratégico do ex-presidente talvez só encontre eco em sua predecessora, Rosa Weber, que fez algo semelhante em setembro de 2023.

Ambos os casos são problemáticos e merecem críticas. Tanto Weber quanto Barroso tiveram tempo suficiente em seus mandatos para pautar o julgamento da ADPF 442 (descriminalização do aborto), mas optaram por fazê-lo durante o último suspiro de vida de seus cargos. O comportamento de Weber ainda conta com uma pequena atenuante: seu mandato como presidente da Corte teve apenas 1 ano e 20 dias de duração.

Mas o que há de problemático em apresentar um voto em um caso sensível antes da aposentadoria? A resposta varia conforme o contexto. Se o julgamento já transcorreu suas fases e outros ministros já juntaram seus votos, não há qualquer problema. Se, contudo, não há certeza sobre quando o julgamento será concluído, o voto póstumo ganha um colorido diferenciado, marcado por um déficit de legitimidade.

Isso, porque desde 2022, o STF consolidou entendimento de que votos já lançados no Plenário Virtual permanecem válidos mesmo se o(a) ministro(a) se aposentar e mesmo após pedido de destaque. A Corte decidiu, por maioria, que a segurança jurídica justifica manter o voto já proferido quando o processo migrar do ambiente virtual para o físico – solução que se aplicou, por exemplo, no caso da “revisão da vida toda”. Do ponto de vista estritamente formal, portanto, o voto póstumo existe e produz efeitos; o problema que levanto aqui não é de validade, mas de uma potencial ilegitimidade por ausência de atualidade deliberativa – uma vez que esse voto incide sobre julgamento sem data certa de conclusão e com possível recomposição do colegiado.

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A história, portanto, repetiu-se. Primeiro como tragédia, quando Barroso, em 2023, pediu destaque após o voto da relatora Rosa Weber e, com isso, interrompeu o julgamento no Plenário Virtual. E agora como farsa, já que em seu último dia no cargo, devolveu o caso ao ambiente virtual e solicitou ao novo presidente, Edson Fachin, a convocação de sessão extraordinária e lançou seu voto. O desfecho, porém, foi o mesmo: o processo foi suspenso após um novo destaque. Perpetua-se, assim, a incerteza em meio a uma sequência de atos individuais que, somados, esvaziam a deliberação colegiada e prolongam o hiato decisório.

Nesse cenário, sabendo que o julgamento não seria concluído, Barroso contribui para o enfraquecimento do Supremo enquanto instituição, corroendo seu capital político e, por consequência, a legitimidade do Tribunal. Ao não pautar o caso quando tinha poder para tanto, criou um problema semelhante ao que a teoria constitucional chama de governo da mão-morta.[vi]

Imagine que o julgamento da ADPF 442 não seja concluído antes da próxima década, o que não é uma estimativa absurda. Nesse caso, quantos novos ministros terão passado pela Corte? O quanto a sociedade terá mudado seu modo de pensar sobre essa questão – que materializa um desacordo moral razoável? Diante disso, seria legítimo questionar que um julgamento tão distante possa começar com votos de ministros cujo pensamento há muito não ecoa entre as paredes do Supremo.

O voto póstumo de Barroso, nas condições em que foi proferido, é profundamente marcado pelo individualismo ministrocrático, priorizando um desejo pessoal do ex-presidente de deixar sua marca em um julgamento que lhe é caro, à custa do voto legítimo de um sucessor, que será privado da capacidade de deliberar sobre um assunto tão importante.

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O valor democrático da jurisdição não reside apenas no resultado, mas no processo de deliberação compartilhada. A reiterada prática desses atos individualistas corrói a legitimidade da Corte e abre flancos para ataques anti-institucionais. A mão-morta judicial não pode comandar o futuro. Votos de despedida só honram a jurisdição quando não sequestram do Tribunal o poder de deliberar – aqui e agora – sobre o que é de todos.

[i] Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia

[ii] Daniel Sarmento, Ubiqüidade Constitucional: Os dois lados da moeda

[iii] Diego Werneck & Leandro Molhano, Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro

[iv] Miguel Godoy, O Supremo contra o processo constitucional: decisões monocráticas, transação da constitucionalidade e o silêncio do Plenário

[v] Miguel Godoy, Os 18 Supremos

[vi] Adam M. Samaha, Dead Hand Arguments and Constitutional Interpretation

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