Caso legalizada pelo STF, pejotização poderá destruir direitos trabalhistas e gerar caos social

O Brasil encontra-se diante de uma encruzilhada histórica e poderá em breve decidir se retorna ao século XIX ou se permanece no século XXI. Em 14 de abril deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes suspendeu todas as ações em curso no País sobre pejotização com o objetivo de unificar o entendimento sobre o assunto. Neste mês, o ministro, relator do recurso extraordinário com repercussão geral (ARE 1.532.603) no qual ocorre a discussão do tema, começou a realizar audiências públicas para colher informações de diferentes setores da sociedade, indicando que poderá retomar em breve o julgamento sobre a questão.

O que está em jogo nessa discussão e julgamento é o futuro da proteção trabalhista e da ordem constitucional democrática de 1988. O STF analisará não apenas a validade dos contratos de prestação de serviços que mascaram vínculos empregatícios, mas também a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos de suspeita de fraude e quem deve arcar com o ônus da prova nessas situações: o trabalhador ou o contratante. A questão central é se a autonomia privada e a ampla liberdade de contratar no âmbito das relações de trabalho, defendida por grupos econômicos, é absoluta e pode prevalecer sobre direitos sociais constitucionalmente garantidos.

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A pejotização, que ocorre quando trabalhadores são pressionados a atuar como empresas mediante abertura de CNPJ, representa uma fraude trabalhista reiterada na atualidade travestida de modernização. Esse arranjo transfere custos de proteção social aos próprios trabalhadores e ao Estado, ao passo que maximiza lucros empresariais. O regime de Microempreendedor Individual (MEI) é um mecanismo que tem sido usado para mascarar vínculos empregatícios verdadeiros, criando uma informalidade disfarçada de formalidade.

Os dados são alarmantes. Segundo o Dieese e o Ipea, a pejotização quase dobrou no país em menos de uma década, saltando de 8,5% em 2015 para 14,1% em 2023, o que representa um universo de cerca de 18 milhões de trabalhadores nessa situação. Isso inclui profissionais das mais diversas áreas e indica que praticamente todas as profissões caminham para serem majoritariamente pejotizadas.

Contrariando o discurso de que a pejotização seria uma escolha de profissionais de alta qualificação, os números revelam outra realidade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 56% dos trabalhadores demitidos que se pejotizaram entre 2022 e 2024 recebem até R$ 2 mil mensais, enquanto outros 37% recebem até R$ 6 mil. Estamos falando, portanto, de um processo que atinge principalmente trabalhadores vulneráveis.

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Durante audiência pública promovida pelo STF, representantes do governo Lula manifestaram profunda preocupação com o avanço da pejotização irrestrita. O advogado-geral da União, Jorge Messias, afirmou que a prática se tornou “a cupinização dos direitos trabalhistas brasileiros”, destruindo as estruturas que sustentam a proteção social. Segundo dados apresentados pela AGU, entre 2022 e 2024, a pejotização provocou um déficit superior a R$ 60 bilhões na Previdência Social e perdas de R$ 24 bilhões ao FGTS, recursos que deixam de irrigar políticas públicas da aposentadoria à saúde, da habitação ao saneamento.

Estudo do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp demonstra que a precarização é um pacto com a mediocridade. Com ela, a renda dos trabalhadores cai em até 20% e, sob impacto do corte de direitos, a desigualdade dispara. A redução do consumo gerada por essa piora da renda volta-se contra as próprias empresas, com a queda da atividade produtiva, criando assim um ciclo vicioso que empobrece o país.

Os riscos de uma decisão favorável à pejotização irrestrita são, portanto, múltiplos e graves. Primeiro, levará à precarização massiva da força de trabalho, com perda de direitos trabalhistas básicos como férias remuneradas, décimo terceiro salário, FGTS e seguro-desemprego. Além disso, aprofundará o déficit previdenciário com aumento de fraudes que prejudicam a arrecadação da Previdência Social. Por fim, ela ataca o próprio Estado Democrático de Direito, representando um retrocesso histórico que enfraquece todo o sistema de proteção social construído ao longo de décadas.

É importante destacar que este julgamento se conecta diretamente a outras discussões em curso no STF, como a uberização. O presidente da Corte, ministro Edson Fachin, informou que a votação sobre a validade do vínculo de emprego entre motoristas e aplicativos deve ocorrer em 30 dias. Tanto a pejotização quanto a uberização envolvem a questão fundamental sobre a existência ou não de vínculo entre empregador e empregado fora do modelo CLT e, portanto, quais são os direitos dos prestadores de serviço com modelos de trabalho não convencionais.

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O Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho não restringem a liberdade, mas sim a arbitrariedade. A questão não é impedir formas inovadoras de organização do trabalho, mas proteger o lado mais vulnerável da relação laboral. Quando um trabalhador é pressionado a abrir CNPJ como condição para manter seu emprego ou conseguir uma vaga, não há autonomia real nem liberdade de escolha.

Enquanto o STF delibera sobre a pejotização, vale lembrar que o país já enfrenta problemas graves com o descumprimento de direitos trabalhistas. Segundo o Ministério do Trabalho, aproximadamente 1,6 milhão de empresas no país não estão depositando o FGTS ou estão com parcelas atrasadas, afetando 9,5 milhões de trabalhadores. Além disso, a sonegação de impostos de empresas chega a cerca de R$ 500 bilhões por ano, de acordo com informações do Ministério do Planejamento.

Se legalizada pelo STF, a pejotização também inviabiliza lutas sociais importantes, como o movimento pelo fim da escala 6×1, tratado aqui em artigo anterior. Afinal, trabalhadores pejotizados não têm jornada de trabalho regulamentada e nenhuma proteção contra jornadas extenuantes, ficando à mercê da necessidade de aceitar qualquer condição para sobreviver.

O momento é de definição histórica. O Brasil pode escolher o caminho da dignidade do trabalho, mantendo as proteções sociais conquistadas, ou retroceder a um modelo de exploração selvagem jogando aos leões milhões de trabalhadores desprotegidos. A decisão do STF terá impacto sobre milhões de vidas e definirá que tipo de sociedade queremos ser nas próximas décadas. É preciso defender que o pacto social de 1988 seja preservado e impedir que ele se desfaça em nome de uma falsa modernidade que só beneficia grandes grupos econômicos às custas da dignidade da maioria do povo brasileiro.

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