A ‘Incompletude’ dos contratos rendeu mais um Nobel: Philippe Aghion

Imagine a desafiadora tarefa de redigir um contrato para uma parceria que durará trinta anos, como a concessão de uma rodovia ou a construção de uma usina hidrelétrica. Seria humanamente possível prever cada avanço tecnológico, cada crise econômica, cada mudança na legislação ou mesmo cada desastre natural que poderia ocorrer ao longo de três décadas? A resposta, evidentemente, é não. É exatamente a partir dessa constatação que nasce uma das mais importantes áreas da teoria econômica moderna: a Teoria dos Contratos Incompletos.

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Esta teoria rompe com a ideia clássica de que os contratos são documentos perfeitos, capazes de antecipar e resolver qualquer problema futuro. Em vez disso, ela reconhece uma verdade fundamental: as pessoas têm uma capacidade limitada de prever o futuro e nem tudo pode ser descrito ou verificado por um juiz. Sendo assim, os contratos do mundo real sempre terão lacunas e pontos em aberto. Quando o inesperado acontece — uma situação não prevista nas cláusulas do acordo —, surge a pergunta crucial: quem tem o poder de decidir o que fazer? A resposta está no que os economistas chamam de “direitos residuais de controle”. Em termos simples, quem detém esses direitos é quem manda quando o contrato silencia.

A organização genial dessa ideia rendeu a Oliver Hart o Prêmio Nobel de Economia em 2016. Ele demonstrou que a forma como distribuímos esses direitos de controle — quem é o “dono” do ativo ou do projeto em situações imprevistas — molda o comportamento e os incentivos de todos os envolvidos. É aqui que entra a figura de Philippe Aghion, um economista brilhante que, embora mais conhecido por seus estudos sobre crescimento econômico, ofereceu contribuições profundas para expandir e aplicar essa teoria a novos e importantes contextos.

Uma das primeiras grandes contribuições de Aghion, em um trabalho seminal com Patrick Bolton, foi analisar os contratos financeiros incompletos. Eles imaginaram um cenário comum: um empreendedor talentoso, mas sem dinheiro, que busca um investidor para financiar um projeto. O empreendedor quer não apenas lucro, mas também a satisfação de ver sua ideia decolar, enquanto o investidor foca exclusivamente no retorno financeiro. Como alinhar esses interesses, que podem divergir no futuro? Aghion e Bolton mostraram que a estrutura clássica dos contratos de dívida — como um empréstimo bancário — é uma solução inteligente. Nela, enquanto tudo vai bem, o empreendedor mantém o controle. Porém, se o projeto enfrenta dificuldades e o pagamento é ameaçado, o controle passa para o investidor (o credor), que pode intervir para proteger seu capital. Essa transferência de poder contingente é uma maneira elegante de gerenciar a incerteza, garantindo que ambas as partes se esforcem para o sucesso do projeto, mesmo sem um contrato que preveja todos os cenários.

Em outro estudo célebre com Jean Tirole (também laureado com o Nobel), Aghion investigou a dinâmica de poder ao distinguir a autoridade formal (o poder no papel) da autoridade real (a capacidade efetiva de influenciar decisões), uma lição crucial para os contratos públicos. Essa teoria se aplica perfeitamente quando pensamos no gestor de uma obra, que possui a autoridade formal, versus o fiscal de campo, cujo conhecimento técnico lhe confere a autoridade real para validar o serviço. A mesma lógica se amplia nas concessões e PPPs, onde a agência reguladora detém o poder formal, mas a empresa concessionária, por dominar as informações da operação, exerce imensa autoridade real sobre renegociações e decisões estratégicas. O trabalho de Aghion e Tirole ensina, portanto, que a boa governança nos contratos públicos vai além de designar responsáveis formais; ela exige a criação de mecanismos de transparência e incentivos que alinhem o poder de quem detém a informação com o interesse público.

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Aghion e seus colaboradores também abordaram outra questão central: a renegociação. Se os contratos são incompletos, é natural que precisem ser ajustados ao longo do tempo. Mas como garantir que essa renegociação seja justa e não permita que uma parte explore a outra? A solução proposta foi desenhar contratos que já antecipam a necessidade de mudança. Em vez de tentar proibir alterações, um bom contrato cria regras claras para quando e como elas podem ocorrer, incentivando as partes a compartilhar informações e a dividir os ganhos ou perdas de forma equilibrada. É como estabelecer as regras do jogo para a prorrogação antes mesmo de a partida começar.

A Teoria na Prática: Os contratos públicos no Brasil

Em nenhum outro campo esses ensinamentos se mostram tão vitais quanto na esfera das contratações públicas, especialmente em grandes projetos de infraestrutura. Contratos de concessão, parcerias público-privadas (PPPs) e grandes obras são, por natureza, incompletos. Eles envolvem prazos longuíssimos, alta complexidade técnica e um ambiente de incerteza constante. Tentar aprisioná-los em regras rígidas e imutáveis é uma receita para o fracasso.

A experiência brasileira ilustra perfeitamente essa dinâmica. A antiga Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993) operava sob a ilusão do contrato completo. Ela exigia projetos detalhados e regras estritas contra alterações, na esperança de evitar surpresas e aditivos. O resultado, na prática, foi o oposto: uma avalanche de aditivos, atrasos e disputas judiciais, pois a realidade sempre se impunha sobre o planejamento rígido.

Reconhecendo essa falha, a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) representa um avanço significativo, pois absorve, ainda que implicitamente, as lições da teoria econômica, como analisamos em nosso livro. Ao introduzir modelos como a contratação integrada (onde a mesma empresa projeta e executa a obra) e a matriz de alocação de riscos, a nova legislação admite que nem tudo pode ser previsto. Em vez de proibir o imprevisto, ela busca criar mecanismos para gerenciá-lo de forma mais transparente e eficiente, estabelecendo de antemão quem arcará com as consequências de cada tipo de evento. Criou-se espaço para o contrato resiliente!

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Onde essa visão moderna se manifesta de forma ainda mais clara é no arcabouço das concessões e PPPs. A legislação desses setores já nasceu com um “DNA incompleto”. A previsão do “equilíbrio econômico-financeiro” do contrato é o reconhecimento explícito de que as condições podem e vão mudar. Se um evento imprevisível, como uma pandemia que reduz drasticamente o tráfego de uma rodovia, afeta as receitas da concessionária, o contrato precisa ser reajustado para que o projeto continue viável. Esse mecanismo funciona como uma renegociação institucionalizada, uma válvula de segurança que garante a adaptação do acordo ao longo do tempo. Trata-se de uma mudança de paradigma: de uma visão do contrato como uma camisa de força para a de um acordo vivo, que evolui.

Philippe Aghion, seguindo os passos de gigantes como Oliver Hart, ajudou a solidificar a ideia de que um contrato completo é uma ficção. Suas contribuições nos forneceram ferramentas para lidar com a realidade da incompletude, seja através da alocação inteligente de direitos de controle, da compreensão da dinâmica de poder nas organizações ou do desenho de contratos que abraçam a renegociação.

Para as contratações públicas, essa lição é transformadora. O objetivo não deve ser criar um documento exaustivo e imutável, mas sim um framework de governança — um conjunto de princípios e processos que guiarão a relação entre o poder público e o parceiro privado conforme o tempo passa e os desafios surgem. Um contrato de infraestrutura bem desenhado se assemelha menos a um trilho de trem, rígido e fixo, e mais a um mapa, que oferece um destino claro, mas permite ajustar a rota quando obstáculos inesperados aparecem.

Reconhecer a incompletude, portanto, não é um sinal de fraqueza, mas a condição essencial para a robustez de um contrato. Ao incorporar mecanismos de flexibilidade, equilíbrio e governança adaptativa, os acordos de longo prazo ganham resiliência para atravessar incertezas e, finalmente, entregar os resultados que a sociedade espera.

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