A AGU na Constituinte de 1987-1988: epílogo

Como se viu nos artigos anteriores desta série, a concepção da Advocacia-Geral da União (AGU) nos debates da Constituinte se deu sob o signo da integração, diante da necessidade de superação do quadro amorfo de dispersão de órgãos e carreiras que desempenhava as funções de advocacia pública no âmbito federal, considerada a administração direta e a autárquica e fundacional.

É verdade que, ao atribuir à lei complementar a estruturação concreta da AGU, os constituintes evitaram estabelecer no texto constitucional delimitações detalhadas quanto à configuração das carreiras e órgãos que integrariam a instituição. Mas uma coisa é certa: em nenhum momento houve intenção manifestada dos constituintes contra inclusão dos serviços jurídicos das autarquias e fundações na AGU, o que justifica a crítica que hoje fazemos ao caráter da Lei Orgânica da AGU focado na administração direta.

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Naturalmente, não se desconhece a diretriz de interpretação que aparta o texto produzido da intenção do seu autor, especialmente aqueles de natureza prescritiva. Assim, publicado o texto (ou promulgado o texto normativo), a interpretação se dá a partir dos limites de possibilidades dos enunciados que o compõem, e não mais por aquilo que pretendia o seu autor. Todavia, a boa interpretação não se desgarra totalmente dos fatores históricos determinadores de sua produção, podendo o aplicador/intérprete ser auxiliado pelo conjunto de discussões que resultaram em sua aprovação.

Um contra-argumento à vocação integradora da AGU seria o de que, ainda que não tivesse sido a vontade constituinte (mens legislatoris), o texto aprovado (mens legis) do art. 131 vedaria que na AGU fossem inseridos carreiras e órgãos das entidades integrantes da administração pública autárquica ou fundacional, pois a utilização do termo “União” vedaria ao intérprete expandir seu campo de possibilidade.

Porém, para o entusiasta dessa construção, ainda permaneceria o ônus argumentativo referente ao sentido do art. 29, caput, ADCT, especialmente a razão de o constituinte ter feito menção às “Procuradorias e Departamentos Jurídicos de autarquias federais e às Procuradorias das Universidades fundacionais públicas”, como órgãos que passariam a integrar a AGU.

Concede-se que, sob o ponto de vista técnico, teria sido mais apropriado o uso da expressão “Advocacia-Geral Federal”, que refletiria com maior precisão a abrangência pretendida pelos constituintes, bem como o sentido dos termos do art. 29 do ADCT. Tal nomenclatura evitaria interpretações reducionistas que buscam excluir da AGU os órgãos e carreiras voltados à representação da Administração indireta federal, em contrariedade ao espírito integrador da norma constitucional originária.

Além de os termos do art. 29 do ADCT e do debate constituinte sugerirem uma compreensão ampliativa do termo “da União”, o ordenamento jurídico historicamente vivenciado à época corroborava essa intelecção.

Isso porque vigia o então recente Decreto nº 93.237, de 8 setembro de 1986, que regulava as atividades da chamada “Advocacia Consultiva da União”. Apesar de ser “da União”, referido órgão consultivo e de assessoramento prestaria os serviços de consultoria e assessoramento jurídicos no âmbito de toda a Administração Federal (inciso II do art. 1º), indo a ponto de envolver não somente autarquias, mas também “empresas públicas e sociedades de economia mista, as fundações sob supervisão ministerial e as demais entidades controladas, direta ou indiretamente pela União” (art. 2º).

Faziam parte da Advocacia Consultiva da União, não somente órgãos relacionados à Administração centralizada (Consultoria-Geral da República, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Consultoria Jurídicas dos demais ministérios), mas também as “Procuradorias-Gerais ou departamentos jurídicos das autarquias” e “órgãos jurídicos das empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações sob supervisão ministerial e demais entidades controladas, direta ou indiretamente, pela União” (art. 3º).

Ou seja, à época da constituinte, não era visto como impedimento que um órgão “da União” prestasse assessoria e consultoria jurídica para entes da Administração indireta. Tem razão Rommel Macedo quando defende que:

“o art. 131 da Constituição se aplica também à representação judicial e extrajudicial de autarquias e fundações públicas federais. Isso porque tal dispositivo não deve ser interpretado de forma isolada, mas sim sistemática, em consonância com os demais preceitos constitucionais pertinentes.” (v. MACEDO, Rommel. Unificação de carreiras da Advocacia Pública Federal: aspectos jurídicos e gerenciais. In: CASTRO, Aldemario Araujo; MACEDO, Rommel. Advocacia Pública Federal: afirmação como função essencial à justiça. Conselho Federal da OAB. Brasília, 2016, p. 358).

Na mesma linha, entende Ricardo Barroso que a leitura do art. 131 da Constituição, conjugada com o art. 29 do ADCT e com a tradição verificada já na década de 1980 indicava que a Lei Orgânica da AGU necessariamente deveria englobar os procuradores e advogados de autarquias:

“De princípio, de se ver, que o Decreto 72.823/73, ao regulamentar a Lei n. 5.645/70, que estabeleceu as diretrizes para classificação dos cargos do Serviço Civil da União e de suas Autarquias, houve por bem dar tratamento integrado às categorias de Procurador da Fazenda Nacional, Assistente Jurídico, Procurador Autárquico, Procurador (Tribunal Marítimo) e Advogado de Ofício (Tribunal Marítimo), dando tratamento uniforme para ingresso, organização dos níveis e progressão para essas carreiras jurídicas.

Por sua vez, o art. 3º do Decreto 93.237/86, ao regulamentar o funcionamento da Advocacia Consultiva da União, expressamente aludia às Procuradorias e Departamentos Jurídicos das Autarquias federais.

A Constituição de 1988, quando tratou de regular a transição ao novo modelo de advocacia pública fez expressa menção às mesmas carreiras jurídicas que usualmente eram tratadas em seu conjunto, estabelecendo apenas duas leis para organizar e regular o funcionamento da advocacia pública e do Ministério Público, ficando claro que a advocacia pública seria tratada em seu todo, inclusive no tocante aos procuradores e advogados de autarquias, pela respectiva Lei Orgânica da AGU. É o que se extrai da leitura do art. 29 do ADCT.

Disto resulta claro que a lei complementar da AGU viria contemplar e disciplinar todas as carreiras jurídicas da União e suas autarquias em uma única lei, reservando-se outra lei complementar para organização do Ministério Público.” (BARROSO, Ricardo. A Carreira de Procurador Federal e a Advocacia-Geral da União: Uma Abordagem Sistêmica. In Revista da AGU, Brasília-DF, v. 18, n. 04. p.275-300, out./dez. 2019, p. 12)

A conjugação do art. 131 da Constituição com o art. 29 do ADCT, levando em conta o contexto normativo à época vigente e os debates constituintes, leva à conclusão de que expressão “Advocacia-Geral da União” foi adotada mais como um símbolo de centralidade institucional do que como uma delimitação técnico-jurídica do seu campo de atuação. A palavra “União”, tal como empregada no art. 131, não se refere estritamente à pessoa jurídica União, mas a um conceito mais amplo de aparato administrativo federal.

Apesar dessa concepção ampla do termo “União”, o que se viu nos anos seguintes foi uma institucionalização fragmentada da AGU. Embora incumbido da tarefa de organizar a AGU com base na diretriz da integração, o legislador complementar enfrentou entraves políticos que paralisaram essa missão. Parte significativa desses entraves decorreu das resistências corporativas já evidenciadas durante a própria Constituinte em torno de um suposto “trem-da-alegria”.

Assim, a Lei Complementar 73, de 1993, como se referiu no primeiro artigo dessa série, conferiu aos órgãos jurídicos das autarquias a condição de meros “órgãos vinculados” da AGU, deixando de prever formalmente seus procuradores como membros plenos da instituição.

Ao não consolidar, desde 1993, uma advocacia pública federal integrada — reunindo sob o mesmo estatuto todos os advogados públicos da administração direta e indireta de direito público —, a LC 73 cristalizou uma arquitetura fragmentada, com estruturas paralelas e assimétricas, em contraste com o propósito integrador que norteou o constituinte de 1988.

É frustrante constatar que, mais de três décadas depois, essa promessa constitucional ainda aguarde cumprimento. Ainda assim, a história constitucional brasileira mostra que o tempo pode ser aliado da boa política: permanece viva a esperança de que o Congresso Nacional, ao dar andamento ao PLP 337/2017, de relatoria do deputado Lafayette de Andrada, integre, de forma plena e definitiva, na AGU, todo o serviço jurídico da administração pública federal direta e indireta de direito público.

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Com este epílogo, conclui-se um percurso de sete artigos que buscou reconstituir a gênese da AGU, desde os antecedentes normativos e experiências estaduais, passando pelo Anteprojeto Arinos, pelos substitutivos de Bernardo Cabral, pela redação final do art. 131, pelo debate sobre as disposições transitórias e, por fim, pelo exame de sua implementação pela LC 73/1993.

Ao longo dessa trajetória, ficou evidente que a AGU foi concebida como projeto de integração, mas nasceu com a marca de um compromisso incompleto. Resta agora à nossa geração e ao parlamento brasileiro decidir se a promessa de 1988 será cumprida — ou se continuará a ser, apenas, uma página inacabada da história constitucional.

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