STF: a dupla tributação do ICMS para combustíveis nos estados de destino

Está em andamento no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Tema nº 1.258, que trata do direito de manutenção dos créditos de ICMS em operações interestaduais com combustíveis derivados de petróleo. O caso concreto trata do Querosene de Aviação (QAV).

Conheça o JOTA PRO Energia, monitoramento jurídico e político para empresas do setor

Os combustíveis derivados de petróleo são tributados pelo ICMS nos estados de consumo. Como os combustíveis derivados de petróleo vêm de um bem que é da União, o petróleo, a Assembleia Constituinte de 1988 optou por evitar a concentração da arrecadação nos estados produtores, passando a tributação exclusivamente ao destino. Ao mesmo tempo, os royalties devidos como compensação financeira ficam, em boa parte, com os estados e municípios produtores, de acordo com o §1º do artigo 20 da Constituição.

Nas operações interestaduais, para que ocorra essa tributação no estado de consumo, ou de destino, o 155, §2º, X, b, da Constituição da República determina que as operações são imunes, o mesmo ocorrendo para energia elétrica. Evita-se a tributação da operação interestadual, exatamente para que o ICMS venha a incidir apenas no Estado de destino, que fica com a arrecadação integral do tributo. Mais de 35 anos depois de instituído pela Constituição de 1988, esse pacto federativo pode ser anulado. Negar o direito ao crédito do ICMS na origem, em operações interestaduais imunes, equivale a tributar o combustível duas vezes: no estado de origem e no estado de destino, cujos consumidores e contribuintes serão penalizados em relação a estados que têm refinarias e infraestrutura primária na produção e oferta de combustíveis.

A imunidade interestadual do ICMS dos combustíveis derivados de petróleo, e da energia elétrica, não é uma desoneração, como já decidiu o STF no RE nº 198.088/SP. Trata-se de técnica de transferência de arrecadação. Diferentemente da isenção, a imunidade é uma não incidência tributária qualificada, na medida em que o legislador constituinte, antes de conceder competência tributária para retirá-la, ou para permitir que o legislador ordinário não a utilize, simplesmente não concede tal competência. A imunidade é a ausência do poder de tributar, a sua inexistência. Ao mesmo tempo, o ICMS tem é não cumulativo. O contribuinte toma crédito relativo ao ICMS cobrado nas operações anteriores. Assim, havendo operação imune, com operações prévias tributadas, há direito a crédito de ICMS. Tal sistemática é fundamental, sob pena de se anular o efeito da não cumulatividade, e da imunidade.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

A título de exemplo, quando um contribuinte compra QAV em um Estado A, o ICMS é recolhido pela refinaria para o Estado de A. Se o contribuinte transfere o produto para o Estado B, que não é produtor de QAV, para vender a uma companhia aérea, esse contribuinte fará uma operação imune de circulação do QAV entre  A ao B, e irá recolher o ICMS ao B, quando vender para a companhia aérea. Para neutralizar o custo do ICMS pago ao Estado A, afinal o destino é o Estado B, a distribuidora usa o crédito da operação anterior, ocorrida no Estado A. Caso o Estado A não reconheça o direito ao crédito, por causa da operação interestadual imune, o QAV terá sido tributado em A e também em B. Assim, o cidadão do Estado B irá pagar por uma passagem aérea tributada duas vezes, enquanto o cidadão de A pagará por uma passagem aérea tributada apenas uma vez.[1]

O QAV consumido em GO tem origem em SP, assim como o consumido em MT e MS. O QAV adquirido em SC vem do RS; o do ES, do RJ; o da PB e de AL vem de PE; o de SE, da BA. Dessa maneira, caso o Tema nº 1.258 seja desfavorável aos contribuintes, os brasileiros e brasileiras que residem em GO, DF, MT, MS, SC, AL, PB, ES arcarão com a dupla tributação do ICMS nas suas passagens aéreas, em comparação aos cidadãos que residem em Estados com infraestrutura primária para o QAV. Os contribuintes de direito, as distribuidoras que adquirem produtos em um Estado para vender em outro Estado, terão dupla tributação, em comparação a distribuidoras que adquiram produto importado pela filial de destino da importação. Nesse caso, o produto só passa por um Estado, o que tornaria o produto nacional mais caro, por duplamente tributado, do que o combustível importado.

As consequências acima representariam uma série de violações constitucionais. Brasileiros e brasileiras que já arcam com um custo logístico maior para receber combustível de outros Estados serão submetidos a tratamento tributário mais gravoso. Isso impacta o direito fundamental de ir e vir. Imagine-se que alguém no PI, em RO, em RR, no DF, precisa de um voo para tratamento de saúde em outro Estado. Essa pessoa terá que arcar com um custo tributário que pode inviabilizar seu direito de buscar tratamento de saúde.

O custo da produção agrícola, do escoamento da produção de Estados como MT e GO terá dupla tributação, afetando de maneira diferente contribuintes de fato e de direito na mesma situação fática, o que viola o artigo 3º, incisos I e III da Constituição da República, que tem na construção de uma sociedade brasileira justa e solidária e na redução de desigualdades regionais objetivos da República. O direito de igualdade e da isonomia tributária também são violados (art. 5º, caput; art. 150 II). A determinação constitucional para a tributação nos Estados de destino é parte do pacto federativo, foi negociada em 1988; esse pacto constitucional estaria, portanto, violado.

Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email

Do ponto de vista dos contribuintes de direito, há violação ao direito de isonomia tributária (art. 150, II); direito ao crédito de operações anteriores, e a ser tributado apenas no Estado de destino (art. 155, §2º I; §4º I); livre iniciativa, livre concorrência e uma atividade econômica que promova a redução de desigualdades regionais (artigo 170, caput, e incisos IV e VII)). O STF já se posicionou em relação ao assunto, no Tema nº 689, quando decidiu que cabe ao estado de destino, em sua totalidade, o ICMS sobre a operação interestadual de fornecimento de energia elétrica a consumidor final, para emprego em processo de industrialização, não podendo o Estado de origem cobrar o referido imposto.

É importante, finalmente, ter-se em mente que o precedente do Tema nº 1.258 trará consequências para vários tipos de operação com petróleo e derivados, não apenas o QAV. Inclusive em relação a operações passadas, de acordo com os fluxos, função do contribuinte na cadeia e produto. A imunidade interestadual dos combustíveis derivados e energia elétrica foi estabelecida para assegurar a arrecadação aos estados de destino, não como um benefício fiscal aos consumidores desses estados. Ocorre que o impacto econômico da bitributação viola direitos tanto desses estados, que têm direito a tributação exclusiva sobre esses produtos, quanto dos contribuintes de fato, que já desfavorecidos pelo custo logístico dos combustíveis derivados de petróleo, podem ser surpreendidos com um novo custo tributário no Brasil.

_________________________________________________________

[1] Atualmente, alguns estados brasileiros aplicam o diferimento do pagamento do ICMS sobre o QAV fornecido pela refinaria para a distribuidora. Em alguns estados, há determinação de encerramento do diferimento no caso de operações interestaduais, o que implica tributação na origem, e depois no destino. Assim, é indiferente para este caso haver ou não diferimento do ICMS na origem.

Generated by Feedzy