O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha desfruta de fama mundial e disso são conscientes e orgulhosos os nacionais daquele país; reputação parecida só foi angariada por um indivíduo, Peter Häberle, embora isso seja quase ignorado por seus compatriotas. Com esse termo de comparação, o Süddeutsche Zeitung expressou o que acredita ser a posição peculiar ocupada pelo Universalgelehrt até o último dia 6 de outubro, quando faleceu aos 91 anos[1].
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É inquietante ler, no necrológio do jornal bávaro, a conjectura de que um dos maiores divulgadores da experiência democrática da República de Bonn é mais festejado no exterior do que em seu país. Afinal, notória simbiose entre inúmeros capítulos do constitucionalismo democrático alemão pós-1945 e os aportes teóricos de Häberle. A teoria dos direitos fundamentais é um deles e será objeto das linhas seguintes, confessadamente escritas em jeito de homenagem.
A Lei Fundamental alemã de 1949 transpôs a tradicional compreensão filosófico-teológica de dignidade da pessoa humana para um texto constitucional juridicamente vinculante[2]. Essa premissa nada mais fez que dar vazão ao consenso político então vigente: cultivar e manter o pluralismo político requer combate a desvios na pauta civilizatória, algo que as compreensões relativistas de democracia sempre toleraram[3].
A solução encontrada foi alçar os direitos fundamentais à posição de pedra angular daquele Estado que seria, a partir de então, construído[4]. A Grundgesetz de Bonn concebe os direitos fundamentais como normas que vinculam, com eficácia direta, os poderes legislativo, executivo e jurisdicional (artigo 1, III); reitera que a atividade legislativa deve observância aos limites postos pela ordem constitucional (artigo 20, III); e, mais importante, proclama a intangibilidade do núcleo essencial dos direitos fundamentais em relação às leis (artigo 19, II) e às emendas constitucionais (art. 79, III), na medida em que são elevados à posição de cláusulas pétreas do novo regime[5].
O texto constitucional era apenas o início dessa história. Um movimento não coordenado – nem por isso menos harmônico – entre academia e tribunais foi responsável por desenvolver, dos anos 1950 até o presente, um aparato conceitual cujo resultado se fez sentir na ampliação do campo de eficácia dos direitos fundamentais encartados na Grundgesetz[6].
A vinculação jurídico-fundamental passa a imputar ao Estado deveres de proteção, passíveis de embasarem a postulação de prestações materiais em juízo[7]. Âmbitos administrativos tradicionalmente imunes à normatividade constitucional agora são obrigados a observá-la (v.g. as “relações especiais de sujeição”[8]). Até mesmo os vínculos jurídicos convencionados entre os particulares foram incluídos no âmbito protetivo jurídico-fundamental – o que conferiu proteção em face a intervenções provocadas por atores não-estatais[9].
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A base dogmática comum a esses desenvolvimentos é a seguinte: para além da tradicional função de defesa contra o Estado, os direitos fundamentais também encartam princípios objetivos da ordem política[10]. Essa compreensão ganhou formulação definitiva no caso Lüth (1958), do Tribunal Constitucional[11]; de tão marcante, há quem divise, nele, uma espécie de certidão de nascimento da República Federal da Alemanha[12].
Foi assim que à ciência do direito público alemão colocou-se o desafio de promover a reconstrução sistemática do ordenamento jurídico a partir dos direitos fundamentais[13]. Foi nesse contexto que um talentoso aluno de Konrad Hesse[14] defende e publica, em 1962, tese de doutorado dedicada à cláusula de garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Trata-se de Peter Häberle. Na tese, ele parte do pressuposto de que o “pensamento de intervenção e limites” (Eingriffs- und Schrankensdenken) falha na tarefa de fornecer uma perspectiva metódica própria à identificação e proteção de um núcleo intangível de liberdade jusfundamental[15]. A insuficiência de tal enfoque está em comungar da premissa de que a liberdade seria uma realidade social anterior ao Estado. O que seria um equívoco, estima Häberle, afinal essa é tão somente a “liberdade liberal”[16], aquela que espelha a dicotomia Estado/Sociedade, tão central para o constitucionalismo liberal do século XIX[17].
Em contraponto, a teoria institucionalista dos direitos fundamentais de Häberle pontifica que a liberdade “só tem sentido enquanto liberdade na sociedade, enquanto liberdade normativamente conformada e ordenada”[18]. E assim deve ser porque as necessidades do presente se impõem. A Lei Fundamental de 1949, a seu aviso, criou um Estado Prestacional (Leistungsstaat), “o qual, por meio de organização e procedimento, direta ou indiretamente, oferece prestações a cidadãos e grupos, as quais, no sentido mais amplo, têm uma relação primariamente positiva com os direitos fundamentais”[19].
Assim, a inegável reconfiguração das tarefas do Estado apresentou a necessidade de se proteger direitos fundamentais mediante adoção de medidas positivas, o que, por sua vez, conduziu o Tribunal Constitucional e a academia alemã a trabalhar sob o pressuposto dogmático de que os direitos fundamentais revelam, a um só tempo, uma dimensão subjetiva e outra objetiva, como mencionado[20]. O talento de Häberle, no ponto, foi o de trabalhar essa clivagem sob a perspectiva integradora – notabilizada pelo propósito de construir mediações que superem a unidimensionalidade e intransigência das dicotomias[21].
É tal perspectiva integradora que explica tanto a recusa de Häberle àquela noção de liberdade típica do dualismo Estado/Sociedade quanto a síntese que ele viria a oferecer a respeito das dimensões subjetiva/objetiva dos direitos fundamentais. Muito embora a perspectiva institucionalista impute a eles um “caráter de princípios de ordem objetiva (objektive Ordnungsprinzipien)”[22], essa nota transpessoal convive com o reconhecimento de que os direitos fundamentais são realizados e desenvolvidos pelos indivíduos, comunitária e processualmente[23].
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Desde então, Häberle só aprofundou sua aposta nos procedimentos como meio de reforço do aspecto jurídico-material dos direitos fundamentais[24]. Essa decisão metódica contagiou todo o seu sistema de pensamento.
Um exemplo bem o ilustra. Contra uma opinião estabelecida que vislumbra na interpretação constitucional um “evento exclusivamente estatal”[25], Häberle amplia o círculo hermenêutico: “todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma”[26]. Os destinatários de uma norma são pré-intérpretes (Vorinterpreten). A interpretação constitucional, simultaneamente, é “elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade” (“weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird”)[27].
O Häberle “da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, tão conhecido no Brasil, é desdobramento consequente daquele Häberle que, desde 1962, tem absoluta ciência de que o Estado não pode abrir mão de técnicas de organização e procedimento quando o assunto é proteger situações jurídicas fundamentais.
E a mesma perspectiva integradora que reelaborou criativamente a separação entre dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais foi aquela que, logo depois, estruturou as memoráveis contribuições de Häberle à teoria da democracia. Sim, porque a “Constituição aberta” assume a tarefa de estruturar tanto o Estado quanto a esfera pública (Öffentlichkeit), o que demanda integração ativa de todas as forças sociais e privadas, mediante o estabelecimento (novamente!) de vias procedimentais adequadas para a produção de uma interpretação pluralista[28], que perquira por “alternativas práticas possíveis e necessárias”[29].
O que, diferentemente, nos parece impossível é detectar traços de verossimilhança no arrazoado que aceita o reconhecimento mundial de Häberle para de pronto insinuar que, na Alemanha, o caso é de anonimato. Se esse grande produto do pensamento juspublicista alemão, a dogmática dos direitos fundamentais, foi amplamente divulgado mundo afora, ele o foi – por muitas vias, inclusive a da hermenêutica constitucional – pelo filtro de Peter Häberle, jurista universal pela palavra e pelo exemplo de sempre aprender em conjunto.
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[1] PRANTL, Heribert. “Ein Riese des Rechts”. In: Süddeutsche Zeitung, 07/10/2025, disponível em: https://www.sueddeutsche.de/politik/nachruf-peter-haeberle-rechtswissenschaft-guttenberg-li.3322794
[2] HÄBERLE, Peter. “A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75.
[3] Para a fundamentação normativa da noção, na Lei Fundamental de 1949, Cf. JASCHKE, Hans-Gerd. Streitbare Demokratie und innere Sicherheit: Grundlagen, Praxis und Kritik. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1991, p. 65-68.
[4] KRIELE, Martin, Introducción a la teoría del Estado: fundamentos históricos de la legitimidad del Estado constitucional democrático. Trad. Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, pp. 149-150, que bem assevera o traço inovador de um Estado que tem por missão primordial a de garantir direitos.
[5] O nexo entre as cláusulas pétreas e o bom funcionamento das instituições democráticas é frequentemente sublinhado na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, para quem a disposição do art. 79, III, da Lei Fundamental é funcionalmente orientada a impedir que “a ordem constitucional vigente seja destruída, na sua substância ou nos seus fundamentos, mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a posterior legalização de regime totalitário” (BVerfGE, 30:1[24]). Cf. também: MENDES, Gilmar Ferreira. “Limites da revisão constitucional”. In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2004, p. 435-442.
[6] SCHULZE-FIELITZ, Helmuth. “L’arrêt Lüth – 50 ans après”. In: Trivium. Vol. 30. Paris: Ed. Maison des Sciences de l’Homme, 2019, p. 6-7.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Saraiva; IDP, 2024, p. 134.
[8] ERICHSEN, Hans-Uwe. “Besonderes Gewaltverhältnis und Sonderverordnung”. In: Festschrift für H. J. Wolff. Munique: C. H. Beck, 1973, p. 219-246.
[9] CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. Ingo Sarlet e Paulo Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 23-28.
[10] HESSE, Konrad. “El significado de los derechos fundamentales”. In: Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2011, p. 156-160.
[11] Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, Primeiro Senado, Decisão de 15 de janeiro de 1958, primeiro item da ementa. BVerfGE 7, 198-230.
[12] ROELLECKE, G. “75 Jahre Grundgesetz”. In: Rechtshistorisches Journal. Vol. 19. Frankfurt: Löwenklau Gesellschaft, 2000, p. 632 e ss.
[13] AZPITARTE-SÁNCHEZ, Miguel. “Apuntes sobre el pensamiento de Peter Häberle en el contexto de la dogmática alemana”. In: Revista de la Facultad de Derecho de Granada, n.º 6, Granada: Universidad de Granada, 2003, pp. 346 e ss. Agora em: MENDES, Gilmar; MAIA, Paulo Sávio (orgs.). Peter Häberle: teoria constitucional para a democracia. Avaré: Contracorrente, 2025.
[14] Em entrevista concedida em 21 de abril de 2009 ao Professor Raúl Gustavo Ferreyra, Häberle não escondeu a satisfação com o acerto na escolha de seu objeto de pesquisa: “Ha sido una gran suerte para mí haber podido proponer a mi maestro académico K. Hesse en Freiburg, la elección de la famosa ‘Garantía del contenido esencial’ del art. 19 II de la Constitución alemana (GG) para mi tesis doctoral”. Cf. FERREYRA, Raúl Gustavo. “Cultura y derecho constitucional. Entrevista a Peter Häberle”. In: Academia – Revista sobre enseñanza del Derecho. Año 7, n.º 13. Buenos Aires: UBA, 2009, p. 221.
[15] HÄBERLE, Peter, Die Wesensgehaltsgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz – Zugleich ein Beitrag zum institutionellen Verständnis der Grundrechte und zur Lehre des Gesetzesvorbehalts. 3ª ed. Heidelberg: Müller, 1983, p. 126.
[16] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, “Théorie et interprétation des droits fondamentaux”, en Le droit, l’État et la constitution démocratique, Trad. Olivier Jouanjan, Paris, LGDJ, 2000, p. 261.
[17] HESSE, Konrad. “Observaciones sobre la actualidad y el alcance de la distinción entre Estado y Sociedade. In: Escritos de Derecho Constitucional, Ed. de Pedro Cruz Villalón e Miguel Azpitarte-Sánches, 3ª ed. Madrid: CEPC, 2011, p. 120-121 e 127-128, sobretudo.
[18] NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. 3ª ed. Lisboa: AAFDL, 2021, p. 310.
[19] HÄBERLE, Peter. Direitos Fundamentais no Estado Prestacional. Trad. Fabiana Kelbert e Michael Donath. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 25.
[20] GRIMM, Dieter. “Retorno a la comprensión liberal de los derechos fundamentales?” In: Constitucionalismo y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2006, p. 167, que a propósito da valorização da dimensão objetiva dos direitos fundamentais a partir de 1960 afirma se tratar de uma “reação à mudança das condições de realização da liberdade individual e, portanto, não se deve à casualidade, mas à necessidade”.
[21] VOβKUHLE, Andreas; WISCHMEYER, Thomas. “Der Jurist im Kontext. Peter Häberle zum 80. Geburtstag”. In: Jahrbuch des öffentlichen Rechts der Gegenwart. Vol. 63. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 407. Agora em: MENDES, Gilmar; MAIA, Paulo Sávio (orgs.). Peter Häberle: teoria constitucional para a democracia. Avaré: Contracorrente, 2025.
[22] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. “Théorie et interprétation des droits fondamentaux”. In: Le droit, l’État et la constitution démocratique. Trad. Olivier Jouanjan. Paris: LGDJ, 2000, p. 260.
[23] HÄBERLE, Peter. Die Wesensgehaltsgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz – Zugleich ein Beitrag zum institutionellen Verständnis der Grundrechte und zur Lehre des Gesetzesvorbehalts. 3ª ed. Heidelberg: Müller, 1983, pp. 108-115.
[24] HÄBERLE, Peter. Direitos Fundamentais no Estado Prestacional. Trad. Fabiana Kelbert e Michael Donath. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 53.
[25] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997, p. 23.
[26] Idem, p. 15.
[27] Idem, p. 13.
[28] HÄBERLE, Peter, “Verfassungsprozeßrecht als konkretisiertes Verfassungsrecht – Im Spiegel der Judikatur des BVerfG”. In: JuristenZeitung. Vol. 31, nº 13. Tübingen: Mohr Siebeck, 1976, pp. 377-84.
[29] HÄBERLE, Peter. Teoría constitucional sin derecho natural. Trad. Laura Carugati y
Gastón R. Rossi. Buenos Aires: EDIAR, 2023, p. 49.