Além do líder: como se constroem grandes lideranças políticas?

No dia 30 de outubro de 2022, o Brasil parecia um espelho partido. Lula e Bolsonaro se enfrentavam nas urnas. Em cada metade, um país distinto: de um lado, bandeiras vermelhas agitavam promessas de inclusão; do outro, camisas verde-amarelas erguiam valores conservadores e críticas ao sistema. A disputa era ruidosa, mas revelava algo mais profundo: lideranças políticas não emergem do acaso. Elas são construídas por trajetórias, aceleradas por crises e sustentadas por redes que vão muito além da figura do líder.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Grandes lideranças são moldadas na interseção entre estruturas, contextos e eventos. As estruturas são os alicerces: partidos, instituições, sistemas eleitorais e barreiras históricas de acesso ao poder. Os contextos definem o clima do momento: mudanças culturais, crises econômicas, instabilidade institucional, fadiga com a polarização e novas expectativas sociais. E os eventos funcionam como gatilhos que aceleram ou redirecionam trajetórias: tragédias, condenações judiciais, inflexões econômicas ou marcos simbólicos.

Lula e Bolsonaro representam dois modelos distintos. Lula foi forjado ao longo de décadas como um líder acumulativo: sindicalista, fundador de partido e de centrais sindicais, candidato derrotado antes de ser eleito em 2002. Sua construção passou por camadas: apoio institucional, narrativa de combate à fome e redes sociais consolidadas. Beneficiou-se de estruturas estáveis, do contexto da redemocratização e de eventos como as greves no ABC.

Bolsonaro, por outro lado, seguiu o caminho de uma liderança catalisada. Passou quase três décadas no Congresso com atuação restrita, mas encontrou uma combinação explosiva em 2018: antipetismo, desconfiança nas instituições, crise econômica e redes sociais. A facada durante a campanha funcionou como evento catalisador. Sua ascensão foi meteórica porque encontrou, no caos, um solo fértil para crescer.

Mas 2025 mudou as regras do jogo. A condenação do ex-presidente por tentativa de golpe de Estado o retirou da disputa de 2026 ao mesmo tempo em que inaugurou um novo ciclo. Pela primeira vez, a Justiça brasileira estabeleceu um custo real para pessoas envolvidas com tentativas de ruptura institucional. E esse evento, por si só, reorganiza o campo da direita.

Bolsonaro fora da urna não significa bolsonarismo fora da cena. Seu legado se sustenta em redes digitais robustas, uma base social engajada e um discurso que ainda encontra eco. Na ausência do líder formal, emerge o que se poderia chamar de “partido digital bolsonarista”: uma estrutura informal, sem obrigações legais, mas com capacidade real de mobilização e barganha.

É nesse espaço que lideranças buscam se posicionar. Tarcísio de Freitas surge como figura de transição: tecnocrata com imagem moderada, mas ancorado na base conservadora. Seu nome agrada setores da direita tradicional e parte do empresariado, mas para conquistar a base bolsonarista, precisa sinalizar lealdade simbólica ao líder ausente. O gesto mais comentado nos bastidores da política é a possibilidade de Flávio Bolsonaro como vice em sua chapa, um cálculo que busca consolidar alianças divergentes.

Mas alianças instáveis costumam esconder armadilhas. Parte da direita tradicional quer incorporar o capital eleitoral do bolsonarismo sem assumir todos os seus compromissos políticos, enquanto o núcleo duro da base exige coerência total com o legado de seu líder. Essa tensão define o tabuleiro de 2026.

Não se trata mais de oposição entre projetos, mas de negação mútua de legitimidade. É um ambiente hostil para lideranças moderadas e desafiador para qualquer tentativa de mediação. O cenário presente é de reorganização profunda, onde os sinais de ruptura se combinam a tentativas de reconstrução.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Estruturalmente, o sistema político continua marcado por hiperfragmentação partidária, baixa renovação institucional, empoderamento do Legislativo e distanciamento entre representação formal e demandas sociais. No plano contextual, há simultaneamente fadiga com a polarização, insegurança econômica, desconfiança generalizada e crescente influência das redes digitais como arena central de disputa. E os eventos recentes, da condenação de Bolsonaro à preparação para a COP30, funcionam como marcos de inflexão que alteram expectativas e possibilidades de ação.

Esse conjunto de fatores define o ambiente onde novas lideranças surgirão: um terreno instável, atravessado por disputas simbólicas e com baixa previsibilidade institucional. Trata-se de um jogo onde é preciso conquistar legitimidade em diferentes esferas ao mesmo tempo: nas urnas, nas redes e nas instituições.

Ainda assim, é justamente em cenários de ruptura que novas lideranças podem emergir. Lideranças que entendam o tempo em que vivem, que consigam traduzir sinais difusos em projetos coerentes. O futuro pode ser moldado tanto por insiders que se reinventam quanto por outsiders que decifram o momento.

Não há resposta definitiva para a pergunta: quem liderará o Brasil após 2026? Mas é certo que não bastará ter carisma ou tempo de TV. Será necessário mais: compreender as estruturas que limitam e possibilitam, ler os contextos com isenção e reconhecer os eventos que, mesmo silenciosos, alteram o curso da história. É a partir dessa síntese que surgem lideranças com real capacidade de transformação.

Lideranças políticas são como placas tectônicas: se movem lentamente, mas causam terremotos quando se chocam. O tempo ensina que, em política, o mais perigoso não é o que se vê, mas o que se forma sob a superfície. Reconhecer seus sinais é essencial para entender o presente e se preparar para o que vem à frente.

Generated by Feedzy