Regulação responsiva, legalidade e segurança jurídica em contratos de energia elétrica

A renovação dos contratos de concessão de distribuição de energia elétrica é tema que periodicamente retorna ao centro do debate público e regulatório, dada a relevância estrutural do setor para a economia e a vida cotidiana da sociedade.

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O Decreto n.º 12.068/2024 trouxe novo fôlego a essa discussão, ao estabelecer diretrizes aplicáveis às concessões com vencimento entre 2025 e 2031. Não obstante, os julgamentos recentes conduzidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) revelaram tensões fundamentais — até que ponto é possível inovar na regulação, quais limites a legalidade impõe e como equilibrar eficiência e previsibilidade?

Este é um momento crucial para se reafirmar os pilares da boa regulação. O debate em torno da prorrogação das concessões não pode ser compreendido apenas como exercício técnico, mas deve ser lido sob a ótica da segurança jurídica e da responsividade regulatória, de modo que o setor continue atrativo para investimentos, mas sem renunciar à proteção do consumidor e da coerência normativa.

O marco normativo e o déficit de clareza histórica

A regulação das concessões de distribuição sempre enfrentou expressivos desafios relacionados a diferentes particularidades, como os diferentes níveis de maturidade/de adequação de infraestrutura e a ampla diversidade climática.

Acredita-se que tal cenário contribuiu para que a Lei n.º 12.783/2013, embora tenha tratado de forma expressa a prorrogação de parte das distribuidoras, deixasse os requisitos para deflagração de hipótese de continuidade da concessão em aberto, e remetesse ao Poder Concedente e à Aneel a tarefa de detalhar procedimentos e critérios. O Decreto n.º 8.461/2015, ao regulamentar a matéria, foi alvo de críticas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou instabilidade jurídica e ausência de parâmetros claros para condicionar as renovações. Nesse panorama, o Acórdão n.º 2253/2015-TCU foi enfático ao exigir diretrizes mínimas para evitar que distribuidoras ineficientes fossem premiadas com a prorrogação automática.

O Decreto n.º 12.068/2024, mais recente, buscou corrigir parte dessas falhas, estabelecendo que a renovação dependeria da demonstração de “serviço adequado” a partir de dois critérios centrais: continuidade do fornecimento (mensurada por indicadores como Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora – DEC e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora – FEC) e eficiência econômico-financeira.

Embora represente avanço, o Decreto manteve sua natureza de norma infralegal e, por isso, não poderia alterar ou restringir o conceito legal de serviço adequado previsto no art. 6º da Lei n.º 8.987/1995, que é mais amplo e abrange dimensões como segurança, modicidade tarifária e atualidade tecnológica.

Regulação responsiva e os limites da retroatividade da norma

A regulação responsiva, aplicada ao setor elétrico, deve ser compreendida como uma forma de atuação regulatória que privilegia o diálogo com os agentes e a adaptação das nomas às transformações do setor, sem renunciar à previsibilidade. No caso das concessões de distribuição, essa abordagem significa reconhecer que a agência pode revisar normas, aperfeiçoar indicadores e criar parâmetros de eficiência, mas sempre dentro de um quadro previamente estabelecido.

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Compreende-se que é pressuposto essencial da boa regulação a efetiva parametrização normativa em momento anterior à sua aplicação. Critérios de avaliação não podem ser alterados no curso de processos já instaurados, sob pena de violação do princípio de comprometimento da segurança jurídica. Alterações regulatórias devem ser feitas de forma prospectiva e transparente, via processo regulatório próprio e não por meio de decisões casuísticas em julgamentos específicos.

Com efeito, é essencial que se assegure que a responsividade regulatória não implique, nem autorize, retroatividade normativa. Pelo contrário, a sua eficácia depende justamente da estabilidade do ambiente regulatório, condição indispensável para orientar os investimentos de longo prazo e garantir a coerência das decisões administrativas. A boa governança regulatória, portanto, exige equilíbrio entre inovação e legalidade, de modo que qualquer avanço seja implementado como norma futura, e não como sanção baseada em parâmetros inexistentes no marco vigente.

Admitir a retroatividade, como se aventou em votos divergentes[1], proferidos quando da apreciação de pedidos de renovação das concessões de distribuição pela Diretoria da Aneel, geraria uma série de consequências negativas. Primeiro, porque criaria um ambiente de incerteza em que as concessionárias não saberiam quais parâmetros seriam aplicados ao fim de seus contratos. Segundo, porque desestimularia os investimentos de longo prazo, que dependem da clareza regulatória para serem planejados. E, terceiro, porque abriria espaço para questionamentos judiciais, trazendo ainda mais insegurança ao setor.

Por isso, ao analisar os julgamentos da Agência sobre a prorrogação das concessões, considera-se acertada a posição majoritária que vedou a retroatividade de critérios não previstos no decreto e nas resoluções vigentes. Esse entendimento preserva a integridade do marco regulatório de referência, fortalece a segurança jurídica e evita que decisões individuais substituam o rito adequado.

Em síntese, a regulação responsiva, quando corretamente compreendida, não autoriza retroatividade, mas, sim, exige previsibilidade e diálogo. A agência deve estar aberta a rever normas e a criar incentivos mais eficazes, mas sempre dentro de um quadro normativo estável, que seja conhecido de antemão pelos regulados. Esse é o melhor caminho para que a responsividade seja compatível com a legalidade e com a governança regulatória de um setor tão estratégico quanto o elétrico.

O debate nos julgamentos recentes: divergência e acertos

Os processos que envolveram a EDP Espírito Santo Distribuição de Energia S.A. e a Equatorial Pará Distribuidora de Energia S.A ilustram bem essa situação. No primeiro, discutiu-se a interpretação do art. 2º do Decreto n.º 12.068/2024 à luz do conceito constitucional e legal de serviço adequado. No segundo, avaliou-se a possibilidade de a Aneel antecipar os efeitos da prorrogação da concessão com base em critérios além dos estritamente previstos.

Em ambos os casos, houve voto divergente do diretor Fernando Mosna, que sustentou que os critérios do Decreto seriam apenas “mínimos”, cabendo à Agência ampliar a análise para abranger indicadores como o Índice Aneel de Satisfação do Consumidor (IASC), o Tempo Médio de Atendimento a Emergências (TMAE) e o percentual de obras atrasadas. Para Mosna, essa interpretação seria mais fiel ao art. 6º da Lei n.º 9.897/1995, que conceitua serviço adequado de forma abrangente.

Embora intelectualmente instigante, essa visão esbarra em um limite intransponível– —a ausência de previsão normativa expressa. A própria Procuradoria Federal junto à Aneel, ao ser consultada, foi categórica ao afirmar que a Agência não poderia “criar norma” com efeito retroativo, sob pena de usurpar competência do Poder Concedente. A maior parte do colegiado acompanhou esse entendimento, restringindo-se aos parâmetros já vigentes e preservando a previsibilidade regulatória. Entende-se que a posição majoritária foi acertada.

Admitir a retroação de critérios não previstos equivaleria a sancionar o regulado por padrões desconhecidos, algo incompatível com o princípio da legalidade e com a boa governança regulatória. Se há consenso de que os indicadores atuais são insuficientes, que se promova a revisão normativa, em observância ao devido processo legal, e com ampla participação social e segurança quanto ao momento de sua aplicação.

Considerações finais

A renovação das concessões de distribuição de energia elétrica reforça a necessidade de se preservar a legalidade e a previsibilidade como fundamentos indispensáveis a qualquer processo regulatório. A tentativa de aplicar retroativamente critérios não previstos em norma, ainda que inspirada em uma noção ampliada de eficiência comprometeria a segurança jurídica, enfraqueceria a confiança dos agentes no próprio papel da Aneel. Nesse ponto, a decisão majoritária do colegiado foi acertada ao reconhecer que a responsividade regulatória não se exerce pela improvisação, mas, sim, pela estabilidade de um marco normativo previamente definido.

Isso não significa que o atual modelo seja suficiente ou que não demande aprimoramentos, ao contrário, é legitimo que novos parâmetros de avaliação sejam incorporados. Contudo, a sua introdução deve ocorrer de forma prospectiva, mediante processo regulatório formal, transparente e participativo. Apenas assim se garante que a regulação seja, ao mesmo tempo, responsiva e juridicamente estável, conciliando inovação com segurança jurídica e assegurando que o setor elétrico continue a cumprir sua função essencial de forma eficiente e confiável.

[1] Processo nº 48500.010804/2025-79:

“Naquela oportunidade, argumentei que a interpretação conjunta da Lei n.º 8.987/1995 e do art. 175, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal7, leva ao reconhecimento de que os critérios estabelecidos no art. 2º do Decreto n.º 12.068/2024 são mínimos, e devem, consequente e imperiosamente, ser conjugados com os demais requisitos legais, previstos no §1º do art. 6º da Lei n.º 8.987/1995, para fins de avaliação da possibilidade de prorrogação das concessões.

(…) considerando que os critérios do Decreto n.º 12.068/2024 são meramente mínimos, defendi que cabe à Aneel – na qualidade de ente regulador competente e executor da política pública setorial – o dever de realizar análise ampla e substancial acerca do cumprimento dos elementos previstos na definição de prestação de serviço adequado, estabelecido no §1º do art. 6º da Lei n.º 8.987/1995, com foco na proteção e eficiência do interesse público e na satisfação do usuário.”

Processo n.º 48500.007421/2025-13: “Entendo, assim, que, considerando e a relevância da presente deliberação, que servirá, inclusive, de leading case para as prorrogações das concessões das demais distribuidoras, a atuação da Aneel deverá, rigorosamente, evitar a tentação da análise simplificada, baseada exclusivamente em métricas mínimas, quando o que se exige – por expressa disposição legal – é a verificação abrangente do pressuposto do serviço público adequado, em todas as suas dimensões.”

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