A imunidade parlamentar tem raízes profundas na tradição constitucional brasileira e ganhou contornos sensíveis em razão das experiências autoritárias do país: o Ato Institucional nº 5 (1968) e o período subsequente mostraram como a supressão de garantias representativas podem corroer o debate público e a independência dos mandatos. A Constituição de 1988 reagiu a esse passado, reafirmando a imunidade material de forma ampla.
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No entanto, já mais distante do contexto de autoritarismo, o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, se viu forçado a decidir sobre quais seriam as limitações e os contornos de tal garantia, para compatibilizar a necessária proteção ao livre exercício do mandato com a proteção também constitucional à honra.
Nesse contexto, o STF encerrou recentemente o julgamento do Recurso Extraordinário 632.115/CE, fixando tese de repercussão geral, de observância obrigatória por todos os tribunais do País. O ponto em discussão era o seguinte: o Estado pode ser responsabilizado civilmente (com obrigação de indenizar) por atos abrangidos pela imunidade parlamentar material?
No caso em questão, um deputado estadual do Ceará proferiu, na tribuna, discurso em que acusava um juiz de crimes. O juiz processou o Estado do Ceará, que foi condenado a indenizar o magistrado ofendido, ao que, após recurso negado, a discussão foi levada ao STF, que precisou decidir se prevaleceria a proteção à honra ou a liberdade de expressão em sentido mais amplo, excluindo de forma completa a responsabilidade pelo discurso protegido pela imunidade parlamentar.
A resposta do STF foi clara, fixando, de forma unânime, a tese (Tema nº 950) de que a imunidade parlamentar funciona como uma excludente da responsabilidade civil objetiva do Estado. Ou seja, se a conduta do parlamentar estiver coberta pela imunidade, não caberá nenhuma indenização a favor do ofendido, nem do Estado. Já a eventual responsabilização por extrapolação da imunidade, nos casos em que a conduta não esteja coberta, será direcionada, de forma pessoal, ao próprio parlamentar (já que o art. 37, §6º, da Constituição impõe o dever de responsabilização objetiva do Estado pelos danos dos agentes públicos “nessa qualidade”), em nenhuma hipótese ao Estado.
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O relator, Ministro Luís Roberto Barroso, fundamentou que a imunidade parlamentar excluiria a responsabilidade do Estado com cinco razões: 1) a teleológica, 2) a sistemática, 3) a proporcionalidade, 4) a dimensão objetiva da liberdade de expressão e 5) o desenho representativo da Constituição. Tais fundamentos não são propriamente autônomos, mas é relevante, para uma compreensão adequada do que ficou fixado no Tema nº 950, a exposição de cada um.
O primeiro fundamento do Ministro Barroso foi o teleológico, voltado à finalidade da existência da imunidade parlamentar, que seria justamente para proteger o debate público e a independência do mandato, de forma que permitir indenizações contra o Estado poderia gerar o chamado efeito resfriador (chilling effect): diante do risco de causar prejuízo aos cofres públicos pelos seus discursos, os parlamentares poderiam preventivamente se conter nas manifestações, pois o custo de suas palavras, embora protegidas pela Constituição, seria não só político, mas também orçamentário, deturpando a finalidade da imunidade parlamentar.
O segundo fundamento foi o de que a Constituição deve ser interpretada de forma sistemática, sendo necessário interpretar o art. 37, §6º a partir do art. 53, caput (que garante a imunidade parlamentar), não o contrário, mesmo porque a liberdade de expressão tem proteção preferencial, não sendo admissível a indenização do Estado por conduta cuja a própria Constituição subtraiu a relevância civil.
O terceiro fundamento foi o de que, aplicando o princípio da proporcionalidade, sopesando o direito à honra com a liberdade de expressão e o princípio democrático, a responsabilidade civil do Estado implicaria, no caso, em mais ônus do que benefícios, pelo chilling effect abordado, sendo recomendável a utilização de outras medidas menos gravosas, como a responsabilização política (pelos próprios parlamentares) e, eventualmente, eleitoral.
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O quarto fundamento foi referente à dimensão objetiva da liberdade de expressão, não sendo suficiente (ao menos no caso dos parlamentares no exercício dos mandatos) a proteção da liberdade de expressão como um direito negativo (proibindo censura prévia e afastando medidas ilegítimas), sendo necessárias ações positivas do Estado para assegurar um espaço deliberativo real e robusto. Afastar a responsabilidade civil estatal nesses casos é uma forma de proteger institucionalmente a liberdade de expressão parlamentar.
Por fim, o quinto fundamento foi o de que se o Estado pudesse ser constantemente condenado por declarações parlamentares, a maioria política poderia usar esse expediente como forma indireta de censura: bastaria acionar a máquina pública para inviabilizar financeiramente a voz das minorias. Isso comprometeria o pluralismo, que é um dos pilares da democracia, afrontando a própria arquitetura representativa da Constituição.
Apesar de tais fundamentos do voto do Ministro Relator serem relevantes, é importante destacar que essas razões explicam, persuadem e orientam a aplicação da tese, mas não são por si de observância obrigatória. O que vincula os órgãos jurisdicionais pátrios é a tese de exclusão da responsabilidade objetiva do Estado e a previsão de responsabilização pessoal e subjetiva do parlamentar em caso de extrapolação.
Essa distinção é pertinente porque o voto do Ministro Barroso, no contexto dos fundamentos apresentados, fez algumas considerações sobre os limites da imunidade parlamentar, de certo modo fragilizando a garantia ao dar a entender que não seria absoluta nem mesmo no contexto de manifestação dentro do Parlamento, ao contrário da jurisprudência tradicional do próprio STF, que vem sendo relativizada.
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Até mesmo em razão disso, o Ministro André Mendonça, embora tenha acompanhado a tese vencedora, apresentou algumas ressalvas, esclarecendo que não se deve extrair do Tema nº 950 nenhuma tese vinculante acerca de quais seriam os limites da imunidade parlamentar material, até mesmo porque a conclusão resulta na ilegitimidade passiva do Estado do Ceará, não havendo análise aprofundada acerca dos limites da imunidade no caso concreto.
Essa ressalva é importante porque, muito embora a tese de repercussão geral tenha fixado que ações de indenização dirigidas contra o Estado com fundamento em manifestações parlamentares serão rejeitadas ou extintas e que o caminho para o ofendido passa a ser a ação contra o parlamentar, na qual se exigirá prova da extrapolação do âmbito funcional da imunidade e, se for o caso, da existência de dolo ou culpa, o STF deixou em aberto, no Tema nº 950, os critérios concretos e operacionais para a identificação da extrapolação.
Esse ponto gera, inevitavelmente, uma lacuna interpretativa que terá de ser preenchida pelas instâncias ordinárias. Afinal, será tarefa dos juízes e tribunais locais definir, em casos concretos, quando uma manifestação parlamentar está coberta pela imunidade ou quando há extrapolação suficiente para atrair a responsabilização pessoal do agente. O risco, aqui, é a fragmentação jurisprudencial, com entendimentos diversos sobre a mesma questão, até que o próprio STF volte a se pronunciar em novos precedentes e estabeleça balizas mais claras.
Em síntese, o Tema nº 950 reafirma a centralidade da imunidade parlamentar no sistema constitucional brasileiro, deixando claro que não cabe ao Estado pagar por discursos imunes, mas que o parlamentar que extrapolar sua função representativa poderá responder pessoalmente, cabendo aos Tribunais, até a consolidação da jurisprudência, equilibrar liberdade parlamentar, proteção à honra e preservação do debate democrático.