O que uma mulher no STF tem a ver com a reforma do Estado?

A discussão da ausência de mulheres nos espaços de poder voltou ao debate público com a aposentadoria do ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), anunciada na última semana. O tema não é novo: em 2023, a discussão já havia ganhado destaque quando as posições de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber foram ocupadas por dois homens. Agora, com a saída do ministro Barroso, o debate ganhou força com organizações da sociedade civil mobilizadas para defender que uma mulher seja indicada à cadeira.

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Em carta pública, a plataforma Justa, o Fórum Justiça e a Themis Gênero e Justiça sugeriram sete nomes para o cargo. Há um abaixo-assinado com mais de três mil advogadas signatárias que reforça o pedido por representatividade; e a Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), presidida por um homem, se manifestou publicamente a favor da pauta.

Em mais de 130 anos de história, apenas três mulheres integraram a Corte. E, hoje, temos somente uma ministra, Cármen Lúcia, entre os 11 magistrados. Mas por que a escolha de uma mulher no STF se relaciona com a Reforma do Estado? A resposta é simples. As mulheres são a maioria da população do Brasil e a falta de representatividade de gênero está no Judiciário, mas não se restringe a ele. Essa proporção distorcida da realidade brasileira pode ser vista em todo o setor público do país. As mulheres representam 50,1% dos cargos de média liderança na administração pública federal e essa proporção despenca para 31,9% nas posições de alta liderança, como secretarias executivas e especiais. Considerando o recorte racial, o abismo se aprofunda: apenas 10,6% desses cargos são ocupados por mulheres negras, segundo estudo do Movimento Pessoas à Frente feito com base em informações do Observatório de Pessoal do Ministério da Gestão e Inovação. O Brasil, inclusive, é o último colocado da América Latina no ranking do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em participação feminina em cargos de liderança no setor público.

Instituições públicas devem refletir a diversidade das pessoas a que servem para que as decisões sejam tomadas de forma a atender as reais necessidades de todos os cidadãos e não apenas os interesses do grupo social que tem o poder de escolher.

E a população já demonstrou estar à frente das instituições. Um estudo Datafolha encomendado pelo Movimento Pessoas à Frente, este ano, mostrou que 82% dos brasileiros defendem a reserva de vagas em concursos públicos para mulheres, pessoas negras, indígenas e quilombolas; e 80% apoiam cotas para esses grupos em cargos de liderança.

A discussão não é apenas sobre justiça social, mas também sobre efetividade. A pluralidade de trajetórias, experiências e competências enriquece as discussões e o processo decisório. Além disso, mais mulheres e pessoas negras nesses debates reduzem vieses de outros grupos sociais que tendem a reproduzir desigualdades, fazendo escolhas mais equilibradas.

No STF, esse fenômeno é particularmente relevante, pois boa parte dos temas e julgamentos conduzidos no Supremo afeta diretamente a vida das mulheres, como políticas de saúde reprodutiva, enfrentamento à violência de gênero e igualdade salarial. É impossível sustentar que essas pautas sejam debatidas de forma abrangente, sem vieses e de forma justa ao desconsiderar que mulheres participem da decisão.

Além da dimensão prática, a representatividade tem um efeito simbólico profundo, especialmente para mulheres negras. A filósofa e ativista Angela Davis disse: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Meninas pretas e pardas podem sonhar mais alto com lugares que historicamente lhes foram negados quando enxergam alguém como elas, ocupando uma cadeira na Corte. O mesmo vale para a composição das lideranças no serviço público em geral.

Vale refletir também que a desigualdade não é apenas numérica, ou seja, não se restringe ao acesso das mulheres nesses postos de tomada de decisão. Ela também se expressa nas condições de trabalho, que vão determinar a ascensão e a permanência dessas profissionais. Um estudo liderado pela pesquisadora da Universidade de Brasília Michelle Fernandez revelou que seis em cada dez mulheres líderes no serviço público federal já sofreram assédio moral, e 30% relataram episódios de assédio sexual. Só no Executivo Federal, foram registradas mais de seis mil denúncias de assédio em 2024, segundo a Controladoria-Geral da União — e, considerando a subnotificação estimada pela OIT, o número real pode ser cinco vezes maior. Esses dados mostram que o caminho para a equidade passa também pela criação de ambientes institucionais seguros e respeitosos.

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A escolha de uma ministra para o STF é uma oportunidade de o Brasil sinalizar que quer fazer diferente. E que está preocupado em atender aos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU (Organizações das Nações Unidas), como o quinto deles, com foco na igualdade entre homens e mulheres, o décimo, que busca reduzir desigualdades, e o 16º, que pretende promover sociedades pacíficas e inclusivas.

Muito além de um gesto simbólico, a presença de mais uma mulher na Corte será um passo decisivo para uma Justiça mais plural e conectada com os anseios da população.

Essa urgência, no entanto, vai além do Supremo. A proposta de reforma administrativa, que segue em discussão no país, precisa colocar a promoção da equidade de gênero e raça no centro de suas diretrizes. O serviço público tem potencial para transformar o país, mas precisa corrigir distorções históricas que mantém as mulheres afastadas dos espaços de liderança. O Estado existe para servir à sociedade em toda a sua pluralidade. Quando uma mulher ocupa um lugar de poder, não é só ela que chega lá, mas todo um país que avança em sua democracia.

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