Entendimento da Corte IDH pressiona países da OEA a adotarem políticas climáticas eficazes

Em uma decisão considerada histórica por especialistas em direito, meio ambiente e mudanças climáticas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) estabeleceu, na Opinião Consultiva 32 (OC-32), que a proteção da natureza deve ser considerada norma de jus cogens, ou seja, uma obrigação imperativa de direito internacional.

As conclusões da Corte, emitidas em julho deste ano, devem guiar decisões judiciais, leis e políticas públicas dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), à qual a Corte IDH está ligada, e vão repercutir no Brasil, afirmam juristas e estudiosos consultados pelo JOTA. Os magistrados determinaram na OC-32 que os Estados devem adotar medidas urgentes e eficazes de proteção ambiental.

Na avaliação das especialistas Silmara Veiga Montemor, doutora em Direito Ambiental Internacional e pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), e Maria da Penha Vasconcellos, professora do departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP, a OC-32 “representa um divisor de águas na compreensão jurídica da emergência climática no âmbito interamericano”.

Em entendimento liderado pelo voto concorrente dos juízes Rodrigo Mudrovitsch (Brasil), Eduardo Ferrer Mac-Gregor (México) e Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), a Corte IDH reconheceu que as mudanças climáticas violam direitos humanos fundamentais — como o direito à vida, à saúde, à alimentação e ao meio ambiente saudável — e impôs aos Estados o dever de adotar medidas concretas de mitigação e adaptação.

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Para as pesquisadoras da USP, na prática, “isso significa que os países-membros da OEA, inclusive o Brasil, passam a ter uma obrigação jurídica reforçada de reduzir emissões e proteger populações vulneráveis. As políticas públicas ambientais e climáticas deixam de ser apenas escolhas de governo e passam a configurar obrigações permanentes de Estado, vinculadas ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos”.

No caso do Brasil, segundo Silmara e Maria da Penha, a OC-32 deve repercutir sobre decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos tribunais federais, “fortalecendo a exigibilidade de políticas climáticas, o controle de omissões administrativas e a responsabilização internacional por danos ambientais transfronteiriços, especialmente na Amazônia”.

Instrumento para responsabilização

A jurista Camilla Freitas Amaral, que é pesquisadora de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que a natureza jurídica da OC-32 não é de condenação, mas de guia. “Como uma Opinião Consultiva (OC), ela é o instrumento da Corte Interamericana para elucidar, através da interpretação, o sentido, o propósito e a razão das normas internacionais de direitos humanos. Ela não tem a função de resolver questões de fato ou casos contenciosos em trâmite. Trata-se de um Parecer Consultivo, que não impõe punições diretas como uma decisão de um caso contencioso, visto que seu conteúdo não é vinculante aos Estados. No entanto, poderá indiretamente levar à responsabilização dos Estados que não respeitarem os parâmetros, obrigações e interpretações desenvolvidos no seu texto”.

Isso não quer dizer que não há efeitos práticos para o Estado brasileiro ou outros países, adiciona Amaral, visto que é um guia para a interpretação dos juízes interamericanos em futuros litígios contenciosos que envolvam questões climáticas e ambientais.

“O reconhecimento do direito a um clima saudável, como desdobramento do direito ao ambiente saudável, dará base para que novos litigantes possam reclamar a violação desse direito e para que países possam ser responsabilizados por não fornecer condições climáticas adequadas às suas populações”, afirma a pesquisadora. “Para o Brasil e outros Estados-membros da Convenção Americana, isso implica que Ministérios Públicos, Defensorias, Ministérios do Meio Ambiente e as diferentes instâncias do Poder Judiciário terão de seguir os parâmetros desenhados pela Corte na Opinião Consultiva para respeitar a Convenção Americana”, completa Amaral.

Além disso, as conclusões da OC-32 podem ter efeito no Brasil se o país for acionado diretamente na Corte IDH, segundo a especialista. “A Corte IDH, em sua jurisdição contenciosa, pode, em casos concretos que cheguem ao Sistema Interamericano, analisar o cumprimento dessas obrigações desenvolvidas na Opinião Consultiva. Assim, se em um caso contencioso a Corte determinar que o Estado violou o direito a um clima saudável devido à inação ou ação insuficiente, ela pode responsabilizar internacionalmente o Estado por essa violação e impor medidas de reparação, como compensações pecuniárias e garantias de não repetição, por exemplo”.

Um caso concreto

Uma questão prática que pode ser analisada judicialmente já sob a luz das conclusões da OC-32, na opinião de especialistas, é a aprovação pelo Congresso, em agosto deste ano, do PL 2159/2021, que simplificou regras de licenciamento ambiental e foi visto como retrocesso por entidades e especialistas em meio ambiente e mudanças climáticas.

Para o advogado Paulo Busse, especialista em Direito Internacional do Observatório do Clima, é provável que a Corte IDH seja acionada para questionar a legislação resultante do Congresso Nacional após vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é a Lei 15.190/2025. Segundo o advogado, as conclusões da OC-32 já podem ser usadas em questionamentos a essa lei na própria Justiça brasileira, que já segue leis convergentes com a decisão da Corte IDH. De acordo com Busse, a OC-32 “é mais um argumento que temos, que se soma à legislação interna e à Constituição Federal de 1988, que é claramente protetiva ao meio ambiente e também às populações tradicionais e indígenas”.

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O especialista avalia que o Artigo 225 da Constituição brasileira já traz “quase todos” os direitos reconhecidos pela OC-32. “Da Constituição emana uma legislação que de várias formas diferentes protege o meio ambiente. Por exemplo, o Plano Nacional de Mudanças Climáticas e o Plano Nacional de Combate ao Desmatamento na Amazônia. O Brasil tem um arcabouço legal muito forte para proteger o meio ambiente e tem um Supremo que, nos últimos anos, vem reconhecendo todos esses direitos de forma robusta”, avalia Busse. Para ele, portanto, a OC-32 é um “instrumento de direito internacional que reforça todo esse arcabouço”.

Voto concorrente consolida marco jurídico

O voto concorrente dos juízes Mudrovitsch, Ferrer Mac-Gregor e Manrique é apontado por especialistas como o eixo central da OC-32 e o ponto de inflexão no reconhecimento jurídico do meio ambiente como bem de interesse universal. Ao defender a proteção ambiental como norma de jus cogens — obrigação imperativa do direito internacional —, os magistrados consolidaram um novo paradigma jurídico que vincula diretamente as obrigações estatais de mitigação e adaptação climática à salvaguarda dos direitos humanos.

A fundamentação dos juízes, ancorada em meio século de construção normativa internacional desde a Conferência de Estocolmo de 1972 até o Acordo de Paris, oferece uma base robusta para que tribunais nacionais interpretem o dever de proteção ambiental como dever jurídico e não apenas político.

No caso brasileiro, a posição de Mudrovitsch na liderança do voto majoritário amplia o peso interpretativo da OC-32 no cenário doméstico. Juristas ouvidos pelo JOTA avaliam que o entendimento firmado pela Corte poderá servir como vetor de harmonização entre o sistema interamericano e o direito constitucional ambiental previsto no artigo 225 da Constituição Federal.

Na prática, isso significa que o STF e os tribunais federais terão parâmetros internacionais reforçados para exigir políticas públicas eficazes de enfrentamento à crise climática e de proteção das populações vulneráveis, especialmente na Amazônia. “O voto conjunto marca um passo decisivo na integração entre direito ambiental e direitos humanos e projeta no Brasil uma nova fase de exigibilidade jurídica das políticas climáticas”, resume a pesquisadora Camilla Amaral, da UFMG.

 

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