Entre o código e a lei: o futuro da S.A. no universo tokenizado

A tokenização, processo de conversão de bens, materiais ou imateriais em representações digitais (tokens) registradas em blockchain, consolida-se como uma força transformadora, capaz de remodelar diversos segmentos, incluindo o arcabouço jurídico aplicável as sociedades empresárias.[1]

A convergência entre a inovação da blockchain e as estruturas legais societárias suscita questões complexas, demandando uma análise cuidadosa das adaptações necessárias para sua compatibilização.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Este artigo analisa a influência da tokenização nos direitos dos acionistas, nos registros societários e nas deliberações corporativas. Aborda, ainda, a viabilidade da substituição de ações por tokens e os conflitos entre o regime jurídico das Sociedades Anônimas (S.A. e a natureza descentralizada da blockchain).

O cenário governamental no Brasil já reflete essa tendência. O Banco Central, por exemplo, está avançando com o Drex, a moeda digital oficial, enquanto instituições privadas desenvolvem plataformas para negociação de ativos tokenizados, a exemplo da BEE4 no contexto do sandbox regulatório da CVM.

É inegável que a tecnologia possui potencial de reconfigurar como são concebidas as participações societárias, promovendo ganhos de eficiência e desintermediação.[2] Contudo, para que essa vanguarda se harmonize com a ordem jurídica, ajustes no direito societário são imprescindíveis para garantir a segurança jurídica.

O que são e como funcionam os equity tokens

A tokenização transforma ativos e direitos em títulos digitais registrados em tecnologias de registro distribuído (DLT), como a blockchain. Essa conversão facilita a negociação de frações de ativos, conferindo maior liquidez e transparência.

Para compreender suas possibilidades, é fundamental diferenciar as categorias de tokens. Os Security Tokens são representações digitais de valores mobiliários, como os Equity Tokens (participações em sociedades empresárias), Debt Tokens (direitos de crédito decorrentes de dívidas) e Real Asset Tokens (ativos físicos). Eles não devem ser confundidos com os Utility Tokens, que funcionam como certificados de acesso a produtos ou serviços.

Dentro da classe dos Security Tokens, destacam-se participações societárias tokenizadas, mais conhecidas como Equity Tokens: a representação digital de cotas ou ações de uma sociedade empresária, negociados em plataformas DLT.

Aplicações e impactos no Direito Societário

A tokenização de ações pode democratizar o acesso a investimentos ao permitir o fracionamento de ativos de alto valor. Com isso, um número maior de investidores poderia participar do capital de uma empresa. Essa maior acessibilidade, contudo, impõe uma reavaliação de como direitos inerentes à titularidade de participações societárias – como o direito a voto, o recebimento de dividendos e fiscalização da gestão corporativa – serão exercidos em um ambiente digital.

A substituição de ações tradicionais por equity tokens ou security tokens, é, sem dúvida, um dos aspectos mais inovadores e debatidos da tokenização no contexto societário. Tecnicamente, essa substituição é plenamente viável, com diversos projetos globais já demonstrando a capacidade da blockchain de registrar e transferir a propriedade de ativos de forma eficiente e segura[3] [4].

Os security tokens são ativos digitais que conferem aos seus detentores direitos análogos aos dos acionistas, como participação nos lucros e direito a voto. Sua principal vantagem é a capacidade de fracionar a propriedade, tornando investimentos em empresas de capital fechado ou startups mais acessíveis e líquidos.

Contudo, a substituição integral das ações por tokens não está isenta de desafios. A questão central reside na necessidade de harmonizar a natureza digital e descentralizada dos tokens com os requisitos formais e de publicidade do direito societário tradicional. A correta identificação dos titulares dos tokens, a garantia da autenticidade das transações e a proteção dos direitos dos acionistas minoritários são pontos que demandam atenção rigorosa.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil tem se manifestado sobre a classificação de certos tokens como valores mobiliários, o que implica sua sujeição às rigorosas regras do mercado de capitais, incluindo registro, divulgação de informações e supervisão, como pode ser observado no Parecer de Orientação CVM 40. Adicionalmente, a Receita Federal, na IN RFB nº 1.888/2019, já se posicionou sobre a obrigatoriedade da declaração de ações tokenizadas no Imposto de Renda, um indicativo claro do reconhecimento da existência e relevância desses ativos no âmbito fiscal.

Para que a substituição de ações por tokens se estabeleça como uma prática comum e segura, é fundamental a criação de um arcabouço regulatório claro e abrangente. Este deve definir a natureza jurídica dos tokens, os direitos e deveres de seus detentores, os mecanismos de governança aplicáveis e as responsabilidades dos emissores e das plataformas de negociação. A evolução da legislação e o estabelecimento de ambientes regulatórios experimentais, como o sandbox da CVM, são passos a serem considerados para testar e validar novos modelos de negócios baseados em tokenização, assegurando tanto a segurança jurídica quanto a devida proteção aos investidores.

A inserção da tokenização em operações societárias já se manifesta na emissão e negociação de participações societárias tokenizadas, comumente denominadas Equity Tokens. Atualmente, essa modalidade é particularmente relevante para startups, mas possui um potencial transformador significativo para impactar operações mais tradicionais, como os Quota Purchase Agreements (QPAs) e Share Purchase Agreements (SPAs).[5] Os Equity Tokens prometem uma desburocratização acentuada, com a potencial redução de custos associados à emissão, transação e conformidade regulatória.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

A tokenização de participações societárias tem o potencial transformador de:  reduzir custos de transação e burocracia na emissão e negociação de títulos, uma vez que a eliminação de intermediários é facilitada pelas DLTs; oferecer transparência superior às transações, em virtude da ampla rastreabilidade dos ativos negociados em DLTs; e promover o acesso a capital para um espectro mais amplo de empresas.

Tradicionalmente, os livros societários, desempenham uma função vital na comprovação da titularidade e na rastreabilidade das participações. Com a ascensão da tokenização, a tecnologia blockchain surge como uma alternativa robusta para a digitalização desses registros. Sua imutabilidade e transparência podem simplificar a escrituração e a transferência de ações, eliminando intermediários e reduzindo custos.

Desafios regulatórios e o conflito central

O cerne do debate reside no conflito entre a estrutura centralizada do regime das S.A. e a natureza descentralizada da blockchain. A legislação societária exige formalidades rigorosas para garantir a segurança jurídica e a proteção dos acionistas, paradigmas que a automação e a desintermediação da blockchain desafiam diretamente.

Registros oficiais vs. blockchain

No Brasil, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) já determinou a migração de livros societários para formatos digitais (INs 82/2021 e 79/2022 estabeleceram a obrigatoriedade da migração dos livros societários físicos para formatos digitais, exigindo que as Juntas Comerciais estaduais adotem sistemas eletrônicos para o recebimento de documentos.

Essa mudança impacta diretamente na autenticação e armazenamento, consolidando o formato digital como oficial e reduzindo a burocracia, o que, por sua vez, pavimentando o caminho para a emissão de ações em blockchain.

Contudo, a blockchain ainda não substitui os registros formais exigidos pela legislação vigente. Transações realizadas apenas on-chain (na rede blockchain), sem correspondência nos livros oficiais, podem não ter eficácia jurídica perante terceiros, gerando incerteza sobre a titularidade dos direitos, pois, embora a IN DREI 82 impulse a transição para registros digitais e expanda o mercado para a tokenização, a plena compatibilidade desses registros digitais com as exigências legais para a validade e publicidade dos atos societários ainda demanda um estabelecimento e uma regulamentação mais abrangentes.

As deliberações corporativas, que constituem o cerne da governança societária, também são profundamente influenciadas pela tokenização. A implementação de smart contracts (contratos inteligentes) tem o potencial de automatizar e agilizar processos decisórios, como a convocação e a realização de assembleias de acionistas, bem como a execução dos votos.

Contudo, a aplicação de uma arquitetura inerentemente descentralizada para a governança de uma S.A. levanta questões cruciais sobre a soberania da vontade dos acionistas, a segurança jurídica das decisões tomadas por meio de algoritmos e a responsabilidade em caso de falhas ou disputas complexas. A conciliação entre a autonomia dos smart contracts e a indispensável necessidade de intervenção humana e judicial em determinadas situações representa um desafio regulatório de caráter urgente

A conversão de ações tradicionais em tokens que representam participação societária já se mostra factível, especialmente para companhias de capital fechado, as quais usufruem de maior flexibilidade estatutária e regulatória.

A CVM, ao adotar uma abordagem funcional para a classificação dos criptoativos, reconhece os “Equity Tokens” como legítimas representações de cotas ou ações. No entanto, a substituição integral de ações por tokens em grandes corporações e mercados de capitais maduros implicaria em uma reestruturação profunda dos atuais sistemas de custódia, escrituração e liquidação de valores mobiliários.

Sem um arcabouço legislativo que reconheça a blockchain como meio oficial de escrituração societária, os arranjos de tokenização tendem a operar em um regime paralelo ou híbrido.

Propostas e caminhos possíveis

O cerne da discussão sobre a tokenização no direito societário reside no conflito fundamental entre a estrutura centralizada e hierárquica do regime jurídico das Sociedades Anônimas e a natureza intrinsecamente distribuída e descentralizada da tecnologia blockchain.

As S.A. são regidas por um conjunto de normas que estabelecem formalidades rigorosas para sua constituição, funcionamento, registro de atos societários, transferência de ações e governança corporativa. Essa estrutura visa primordialmente assegurar a segurança jurídica, a proteção dos acionistas e a transparência das operações. Em contrapartida, a arquitetura descentralizada da blockchain, com sua capacidade de automação via smart contracts e a ausência de intermediários, desafia diretamente esses paradigmas consolidados.

Outro ponto de atrito é a identificação dos acionistas. Enquanto a lei exige o registro nominal dos acionistas em livros societários para fins de publicidade e exercício de direitos, a blockchain pode permitir o pseudoanonimato, dificultando a aplicação de regras de responsabilidade e fiscalização. A necessidade de conhecer, a identidade dos acionistas para fins de convocação para assembleias e o cumprimento de obrigações fiscais e regulatórias cria uma tensão com a privacidade que a blockchain pode oferecer.

A determinação da responsabilidade civil também se torna complexa. Em uma S.A., a responsabilidade de administradores e acionistas é claramente é definida pela legislação, no entanto, em regime. descentralizado, como as DAOs (Decentralized Autonomous Organizations), onde decisões podem ser tomadas por algoritmos e a identidade dos e participantes pode ser difusa, a atribuição responsabilidade em caso de prejuízos ou atos ilícitos torna-se um desafio jurídico complexo. A ausência de uma entidade centralizada passível de responsabilização pode gerar insegurança jurídica e dificultar a reparação de danos, é um ponto que certamente merece atenção pelos reguladores.

A tokenização também impacta as deliberações corporativas. Smart contracts podem automatizar a convocação e realização de assembleias, mas a governança descentralizada levanta questões sobre a soberania da vontade dos acionistas e a responsabilidade em caso de falhas. Conciliar a autonomia dos algoritmos com a necessidade de intervenção humana e judicial é um desafio urgente.

Propostas para um novo marco regulatório

Para que a tokenização seja integrada ao ambiente jurídico, é indispensável a formulação de propostas regulatórias consistentes que viabilizem sua adoção de forma segura, eficiente e juridicamente robusta.

Reconhecimento da escrituração em blockchain: A exemplo da Suíça, a legislação brasileira poderia admitir registros distribuídos como equivalentes aos registros físicos ou digitais centralizados. Esse reconhecimento permitiria uma modernização significativa das práticas societárias, conferindo maior transparência, segurança e agilidade.[6], formalizando seu uso em livros societários.
Adoção de modelos de governança híbrida: Permitir a automação de operações societárias via smart contracts, mas preservando a possibilidade de intervenção humana e judicial para validar ou corrigir atos, equilibrando eficiência e segurança
Modernização das Juntas Comerciais: Avançar na digitalização e no reconhecimento formal de registros societários realizados em blockchain. Essa medida estimularia a adoção de soluções digitais inovadoras, reduziria custos e burocracias e consolidaria para consolidar um ambiente favorável ao desenvolvimento de negócios baseados em tokenização.

É fundamental reiterar que “o código não é a lei”. A capacidade técnica de um smart contract não lhe confere validade jurídica automática sem o devido respaldo do ordenamento legal.

Conclusão

A tokenização societária é uma oportunidade ímpar para modernizar o mercado de capitais brasileiro. Para que seu potencial se concretize, o avanço tecnológico deve ser acompanhado por um arcabouço regulatório robusto e flexível.

Para mitigar os conflitos inerentes entre as inovações trazidas pela tokenização e as estruturas jurídicas tradicionais, torna-se crucial que a legislação evolua para acolher as especificidades desses novos ativos. Isso pode envolver a criação de novas categorias jurídicas para os tokens, a adaptação das leis societárias existentes para permitir a digitalização de registros e deliberações, e a clara definição de regras para a governança de entidades tokenizadas.

A experiência de outras jurisdições e a atuação de órgãos reguladores no Brasil, como a CVM e o Banco Central são decisivas para desenvolver um ambiente jurídico que fomente a inovação e, ao mesmo tempo, garanta a segurança e a proteção de todos os participantes do mercado.

As propostas aqui delineadas apontam caminhos para assegurar que essa revolução pavimente uma transição segura e eficiente para a nova era dos mercado de capitais digital.

[1] https://www.deloitte.com/br/pt/services/consulting/perspectives/introducao-tokenizacao.html

[2] https://valor.globo.com/opiniao/coluna/tokenizacao-e-os-novos-fundamentos-do-valor.ghtml

[3] https://www.skadden.com/insights/publications/2025/04/working-through-the-riddles-of-tokenized securities-client-alert

[4]https://www.nortonrosefulbright.com/en/knowledge/publications/60edb8c8/understanding%20tokenization

[5] https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/como-a-tokenizacao-esta-revolucionando-as-startups,6240a0f8181a5810VgnVCM1000001b00320aRCRD

Generated by Feedzy