Competência e segurança: os argumentos na discussão sobre serviço de moto via aplicativo

Apesar de ter circulação corriqueira em diversas cidades brasileiras, o motoapp tem enfrentado interdições desde o início do ano na cidade de São Paulo. Com um decreto de 2023, a Prefeitura tem tentado barrar o oferecimento do serviço, incitando discussões sobre a competência administrativa. Mas, em nível nacional, segundo especialistas ouvidos pelo Estúdio JOTA, a discussão constitucional de competência está ultrapassada.

“Fico surpreso que o Poder Público ainda provoque o Judiciário a se manifestar mais uma vez sobre uma matéria que já foi assentada”, diz Floriano de Azevedo Marques, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “É uma ‘não discussão’, na verdade. Um grande mal-entendido injustificável, é uma matéria velha, superada.”

As decisões mais recentes do tema espelham esse entendimento. No início do mês, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) derrubou o Decreto Municipal 62.144/2023, que havia suspendido o serviço de transporte remunerado de passageiros por motocicleta intermediado por plataformas em São Paulo. 

No mês passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu, via liminar, a  Lei Estadual 18.156/2025 que determinava que os municípios deveriam regulamentar o serviço antes que ele pudesse operar. No âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.852, movida pela Confederação Nacional de Serviços (CNS), também houve manifestações da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral da República (PGR) pela inconstitucionalidade da lei.

Constitucionalidade

Nas decisões, os magistrados afirmam que a proibição do serviço de moto por apps extrapola a competência de municípios e estados na regulação de transportes. Isso porque as competências em relação ao tema já foram amplamente discutidas na época da chegada desses serviços no país, explica Carlos Ari Sundfeld, um dos fundadores da FGV Direito SP. “Nas ações, os juízes têm citado a jurisprudência do Supremo e a Lei Nacional de Mobilidade Urbana [Lei 12.587/2012].”

A Lei previa o transporte público individual, com os táxis e mototáxis tradicionais, como uma moldura da União para o serviço, cabendo às prefeituras a regulação e fiscalização. Em 2018, a Lei 13.640/2018 alterou a legislação, inserindo pontos específicos para as plataformas. Sobre a competência regulatória,  o texto definiu no artigo 11-A que “compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”. Além disso, incluiu previsões sobre diretrizes de segurança e requisitos para os motoristas.

Mais tarde, em 2019, no Tema 967 (RE 1.054.110), o STF fixou a tese de que proibir ou restringir o transporte por aplicativo é inconstitucional por violar livre iniciativa e livre concorrência; e que, ao regular ou fiscalizar, os municípios não podem contrariar os parâmetros federais. 

São esses os argumentos acolhidos por juízes para liberar os motoapps. Pelo acórdão do TJSP, por exemplo, que cita o Tema 967, o decreto municipal “vulnera os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência” e extrapola a competência local ao suspender a atividade. O acórdão ressalta que “os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)”, preservando-se, porém, a competência municipal para ordenar o trânsito — o que não inclui suspender a atividade. A decisão também deu 90 dias para que a prefeitura regulamentasse a atividade.

Já no STF, a ADI 7.852/SP mira a Lei 18.156/2025 – que condiciona a operação à autorização municipal, criando “barreira de entrada” segundo a decisão cautelar de Moraes. O relator alinhou a controvérsia à mesma moldura do Tema 967: municípios podem detalhar requisitos de segurança e fiscalização, mas não podem bloquear o serviço nem contrariar a lei federal de mobilidade. 

A PGR, em parecer do último dia 11, também afirma que a lei estadual “afronta os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência” e o “direito de escolha do consumidor”, além de invadir competência privativa da União (art. 22, IX e XI). A manifestação também apoia a cautelar de Moraes, e, no mérito, pela procedência da ação movida pela CSN.

“O município tem a possibilidade de legislar sobre o assunto, mas não no sentido de uma proibição pura e simples. O que ele pode fazer é regular detalhes”, diz Roberto Pfeiffer, professor da Faculdade de Direito da USP e ex-diretor do Procon de São Paulo. “Proibições ou vedações ao exercício de qualquer atividade estão condicionadas a uma razão que esteja também na Constituição.”

Segurança

Na discussão das motos por app, tem surgido também o argumento da segurança. No julgamento no Órgão Especial do TJSP, a procuradora-geral do município de São Paulo Luciana Sant’ana Nardi disse que a suspensão era necessária diante do risco à integridade física dos trabalhadores e do impacto sobre o sistema público de saúde.

Pfeiffer diz que “o elemento de segurança, de proteção da saúde, é extremamente importante na legislação de defesa dos consumidores”. Na avaliação de Carlos Ari Sundfeld, o imbróglio judicial adia a regulamentação adequada e deixa as pessoas nas mãos dos clandestinos. “O aplicativo tem grande vantagem ao permitir controle e segurança pela informação: a velocidade do motoqueiro, o caminho utilizado, até as avaliações deixadas pelos passageiros”.

“Se a justificativa é a segurança, chame as empresas, edite, põe em consulta pública uma regulamentação, exija capacete, vistoria, carteira de habilitação, antecedentes criminais, rastreamento de viagem, botão antipânico. Todas as exigências que, razoavelmente, vão conferir mais segurança ao usuário”, diz Floriano de Azevedo Marques.

Uma regulamentação municipal poderia seguir os mesmos moldes do que acontece com o Código Nacional de Trânsito – há uma moldura nacional que pode ser respeitada, mas os municípios podem adicionar exigências que funcionem para a realidade de cada um deles, como limites de velocidade em certas vias, por exemplo. “Toda essa questão de equipamento de segurança vai ser absolutamente essencial, pode ser um ponto de uniformidade para todos os municípios, por exemplo”, diz Pfeiffer.

Entenda o histórico

A discussão sobre motoapps remonta a 2019, quando o TJSP julgou inconstitucional a Lei Municipal 16.901/2018, que também proibia o transporte de passageiros por motocicletas na capital paulista. Na época, o TJSP destacou que a legislação federal já regulamentava o setor e que a criação de barreiras adicionais era incompatível com os princípios constitucionais.

Em janeiro de 2023, a Uber e a 99 anunciaram que começariam a operar o serviço de transporte com motos na cidade. Porém, a Prefeitura editou o Decreto 62.144, suspendendo temporariamente o transporte de passageiros por motocicletas por meio de apps. A medida foi fundamentada em alegações de segurança e trânsito, mas não foi acompanhada de regulamentação ou justificativas detalhadas. 

Paralelamente, foi instituído um Grupo de Trabalho pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito para avaliar a viabilidade da regulamentação do serviço. O Grupo de Trabalho reconheceu que “não existe impeditivo para o uso de plataformas por motocicletas”, em seu relatório, divulgado em maio de 2023, que foi citado pela 99 na petição inicial. 

No início do mês, o Órgão Especial do TJSP julgou procedente a ADI contra o decreto, fixando: (i) impossibilidade de municípios contrariar parâmetros federais (art. 22, XI); (ii) violação à livre iniciativa/concorrência; (iii) modulação dos efeitos por 90 dias para permitir regulação prospectiva. 

Paralelamente, em junho deste ano, a lei paulista 18.156 condicionou a existência do serviço à autorização e regulamentação municipal, adicionando exigências e, na prática, criando barreira de entrada. É essa lei que foi derrubada pela liminar de Moraes em setembro.

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