O encerramento da primeira ADPF estrutural pelo STF

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 foi ajuizada em 29 de junho de 2020 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por partidos políticos, no auge da pandemia da Covid-19, com o objetivo de assegurar a proteção emergencial das comunidades indígenas contra a disseminação do vírus.

No curso da tramitação, o objeto da lide foi ampliado: da resposta imediata à crise sanitária passou-se à reconfiguração estrutural do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) e à tutela da integridade territorial, ensejando a tramitação autônoma da Petição 9.585, voltada às desintrusões.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Decorridos pouco mais de cinco anos, o plenário do STF encerrou a ADPF 709 no último dia 26 de setembro, reconhecendo que o plano estrutural executado pela União havia superado as desconformidades constitucionais que justificaram sua tramitação.

O caso representou um ineditismo na jurisdição constitucional brasileira: foi o primeiro processo de controle concentrado em que o STF reconheceu expressamente a natureza estrutural do litígio e o primeiro a percorrer, em sua inteireza, todos os ciclos do processo estrutural: do ajuizamento à elaboração, homologação e execução do plano, passando pelo monitoramento contínuo, até a extinção com julgamento de mérito.

O ciclo dos processos estruturais

O processo estrutural não se reduz a uma decisão pontual, mas desenvolve-se como um verdadeiro ciclo, composto por fases encadeadas que buscam a superação progressiva de uma situação de desconformidade constitucional[1].

Edilson Vitorelli[2], em formulação recente, propõe a subdivisão das reformas estruturais pela via jurisdicional em cinco ciclos: (i) caracterização do litígio, com a identificação de suas causas e atores relevantes; (ii) definição da estratégia de enfrentamento, judicial ou extrajudicial; (iii) elaboração de um plano de reestruturação, com metas, indicadores e responsabilidades; (iv) implementação das medidas pactuadas, sob supervisão e diálogo constante; e (v) reelaboração ou encerramento, quando se constata a superação do problema ou, alternativamente, a necessidade de repactuação.

A ADPF 709 percorreu todos esses ciclos. O primeiro ciclo, de caracterização do litígio, manifestou-se na identificação da situação de extrema vulnerabilidade dos povos indígenas durante a pandemia, bem como na definição dos atores institucionais e sociais envolvidos na proteção sanitária e territorial. O segundo ciclo, de definição da estratégia, materializou-se na escolha da via processual, com o ajuizamento da arguição em 29.06.2020 e a concessão das medidas cautelares que garantiram resposta imediata à crise.

O terceiro ciclo, de elaboração do plano, concretizou-se na construção dialogada de sucessivos planos de atuação pela União entre 2020 e 2023, culminando no julgamento de mérito em que o STF reconheceu expressamente a natureza estrutural da demanda. O quarto ciclo, de implementação, tomou corpo com a execução supervisionada das medidas homologadas, em especial após a aprovação do plano final voltado ao SasiSUS em 15 de abril de 2024, etapa acompanhada por relatórios técnicos da União e pela fiscalização da CGU.

Por fim, o quinto ciclo, de reelaboração ou encerramento, manifestou-se na decisão plenária de 26 de setembro, que declarou a extinção da ação com resolução de mérito e fixou obrigações complementares voltadas a consolidar os avanços alcançados, prevenindo retrocessos.

O encerramento dos processos estruturais

O encerramento é a etapa derradeira do ciclo estrutural. No caso da ADPF 709, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, conferiu em seu voto especial relevo à definição de critérios que evitassem tanto a perpetuação indefinida da supervisão quanto o risco de encerramento prematuro.

Para tanto, indicou três indagações centrais: (i) quais foram os problemas estruturais identificados? (ii) quais soluções foram efetivamente implementadas? (iii) há elementos que demonstrem a capacidade institucional de lidar com os desafios remanescentes? Segundo o relator, o propósito não seria instaurar um estado de perfeição, mas garantir a retirada das instituições da inércia e a retomada de condições mínimas de efetividade dos direitos fundamentais.

Neste particular, Matheus Casimiro, Trícia Navarro e Patrícia Perrone[3] sistematizaram três alternativas para conferir previsibilidade ao encerramento de um processo estrutural: a primeira, de que os próprios planos de ação definam metas prioritárias suficientes para caracterizar a superação da desconformidade; a segunda, de que o Judiciário utilize parâmetros já fixados em normas ou programas administrativos; e a terceira, de que se aproveitem relatórios técnicos de órgãos de monitoramento especializados, como ocorreu na ADPF 709 com o CMAP.

E é precisamente na primeira dessas alternativas que se abre uma oportunidade relevante de atuação para os órgãos de representação judicial de entes públicos (AGU, Procuradorias-Gerais de Estados e Municípios). A prática em processos estruturais mostra que esses órgãos devem orientar, já na fase de elaboração dos planos de atuação estrutural, a indicação clara e objetiva das ações e indicadores-chave que, uma vez corretamente executados, permitam ao Judiciário reconhecer que a política pública alcançou um patamar mínimo de reestruturação e já pode retornar à governança administrativa do Executivo.

Este autor, que atualmente coordena a atuação da AGU em dez processos estruturais em curso no STF, observa que tal alternativa se revela a mais adequada para que Executivo e Judiciário construam previamente consensos sobre as medidas essenciais à superação da desconformidade constitucional. Ao constar expressamente dos autos, esse parâmetro fornece ao Judiciário uma referência técnica advinda do Executivo, favorecendo uma pactuação transparente sobre os marcos mínimos que ensejam o encerramento do processo[4].

O julgamento da ADPF 709

O plenário do STF, em sessão virtual de 19 a 26 de setembro, extinguiu a ADPF 709 por unanimidade, com resolução de mérito, reconhecendo a superação das desconformidades constitucionais. O ministro Edson Fachin acompanhou o relator, mas ressalvou que a Sala de Situação deveria abranger também questões de saúde indígena. No voto condutor, o ministro Barroso destacou que a supervisão judicial em processos estruturais é transitória, voltada a retirar políticas públicas da inércia e restituir ao Executivo sua primazia.

No caso, esse ciclo já se completara: após a homologação do Plano de Ação para o SasiSUS em 15 de abril de 2024, a CGU produziu relatórios semestrais de monitoramento, enquanto a União demonstrou avanços consistentes no desenho, financiamento e execução da política. Constatou-se, assim, que os principais déficits estruturais estavam superados e que o Ministério da Saúde, por meio da SESAI, possuía condições de conduzir a política de forma autônoma.

Para consolidar as reformas e prevenir retrocessos, o relator fixou cinco obrigações adicionais: (i) manutenção da Sala de Situação como instância permanente de acompanhamento das desintrusões e da integridade territorial indígena; (ii) continuidade, pela CGU, da elaboração de relatórios semestrais sobre o SasiSUS por dois anos, com divulgação pública; (iii) realização, em 2028, de novo ciclo de avaliação pelo CMAP, com foco na efetividade do serviço; (iv) adoção, pela União, de critérios técnicos para redistribuição orçamentária a partir do PLOA 2027; e (v) criação, pelo Ministério da Saúde, de núcleos de inteligência de dados, com base em transparência ativa. 

Conclusão

A ADPF 709 afirmou-se como experiência pioneira de processo estrutural no STF. Nascida de um litígio voltado à proteção da saúde indígena na pandemia, evoluiu para um espaço de cooperação institucional destinado a enfrentar desconformidades constitucionais. Ao percorrer integralmente o ciclo estrutural, mostrou que a jurisdição constitucional pode exercer papel de indução e coordenação sem substituir o Executivo, preparando o terreno para a retomada de sua primazia na condução das políticas públicas.

Essa trajetória encontrou sua síntese no desfecho unânime do plenário, que lhe conferiu força simbólica e natureza de transição. Não se encerrou apenas uma ação judicial, mas a crença de que processos estruturais precisam ser intermináveis para produzir efeitos. O caso demonstrou que, mesmo com início, meio e fim, as melhorias podem continuar a irradiar resultados e a prevenir retrocessos.

[1] SANTANA, Felipe Viegas. Processos estruturais no Brasil: a atuação do Poder Judiciário na tomada de decisões em litígios policêntricos. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 96, n.1, 2024.

[2] VITORELLI, Edilson. Uma pauta de atuação estrutural do Supremo Tribunal Federal: por que, quando e como? Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 4, n. 1, p. 253-297, jan./jun. 2024. DOI: https://doi.org/10.53798/suprema.2024.v4.n1.a372.

[3] CASIMIRO, Matheus; NAVARRO, Trícia; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O processo estrutural no STF: quando e como encerrá-lo? JOTA, 28 nov. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-processo-estrutural-no-stf-quando-e-como-encerra-lo. Acesso em: 30 set. 2025.

[4] Sobre o encerramento dos processos estruturais, o Projeto de Lei nº 3/2025, em tramitação no Senado, prevê em seu art. 11 que o monitoramento judicial será encerrado “quando demonstrada a adoção das medidas necessárias à proteção progressiva e concreta dos direitos violados, na forma de que trata o art. 9º, § 3º, inciso VIII”.

Generated by Feedzy