O Brasil enfrenta um desafio complexo para descarbonizar seu setor de transportes até 2050, uma meta essencial para cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris. O setor é responsável por aproximadamente 11% das emissões nacionais de CO2 equivalente, totalizando 260 milhões de toneladas anuais, segundo dados da Coalizão dos Transportes, iniciativa que reúne mais de 50 entidades do setor, incluindo Motiva, CEBDS, CNT e o Observatório de Mobilidade do Insper.
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Em um cenário de inação, as emissões podem atingir 424 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2050, representando um aumento de 63% em relação aos níveis atuais. Segundo Sérgio Avelleda, do Observatório Nacional de Mobilidade Sustentável do Insper, o transporte rodoviário é responsável por mais de 90% das emissões do setor, o que demonstra a dependência brasileira deste modal.
“Descarbonizar o setor de transportes no Brasil é um grande desafio, diferentemente do que acontece em outros países”, explica Felipe Barcellos, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Enquanto outras nações têm no setor elétrico seu principal desafio climático, no Brasil a situação se inverte: quase 90% da matriz elétrica provém de fontes renováveis. Para Barcellos, o setor de transportes é o maior emissor do país em termos de energia.
Três vetores para a redução de emissões
Diante deste panorama, o relatório da Coalizão dos Transportes identificou 90 alavancas de descarbonização que podem reduzir até 70% das emissões até 2050. Estas ações se concentram em três vetores principais que respondem por cerca de 60% do potencial de redução, oferecendo um caminho estruturado para a transformação necessária.
O primeiro e mais impactante vetor é o rebalanceamento da matriz logística brasileira. A meta ambiciosa é aumentar a participação do modal ferroviário de 16% para 33% no transporte de cargas, uma transformação que demandará investimentos de aproximadamente R$ 270 bilhões. Simultaneamente, o modal aquaviário deve expandir sua participação de 15% para 22%.
Embora reconheça a importância dessa transição, Barcellos alerta para os cuidados necessários. Segundo o pesquisador do IEMA, é preciso entender qual é o espaço do Brasil para construir ferrovias, principalmente em áreas de urbanização já consolidada, lembrando dos riscos ambientais como desmatamento e pressão sobre territórios protegidos que essas grandes obras podem causar.
O segundo vetor aproveita uma vantagem competitiva histórica brasileira. Conforme o estudo da Coalizão dos Transportes, a projeção é aumentar o consumo de biocombustíveis de 30 bilhões de litros atuais para 55 bilhões em 2050, incluindo diesel verde, SAF (combustível sustentável de aviação) e etanol. Este investimento, estimado em torno de R$ 225 bilhões, pode reduzir 45 milhões de toneladas de CO2 equivalente. “O Brasil tem a possibilidade de complementar a solução global elétrica com uma tecnologia amplamente dominada por nós”, afirma Avelleda.
A importância dos biocombustíveis se torna ainda mais evidente quando consideramos as limitações da eletrificação imediata. Para Barcellos, eles serão fundamentais especialmente no curto prazo, já que existe um gargalo de crescimento das fontes renováveis. Segundo o pesquisador, essa seria uma maneira de acelerar a transição, sem aguardar que toda a frota seja renovada.
O terceiro vetor representa 35% do potencial de redução de emissões. De acordo com o relatório da Coalizão, a meta é ambiciosa: que mais de 50% da frota de veículos leves seja eletrificada até 2050, exigindo investimentos de cerca de R$ 40 bilhões apenas em infraestrutura de recarga. Paralelamente, a Lei do Combustível do Futuro, aprovada em 2024, estabelece metas progressivas para a redução de emissões no setor aéreo, começando com 1% em 2027 e chegando a 10% em 2037.
A experiência brasileira com o etanol oferece lições valiosas para essa transição. Segundo Avelleda, o etanol só foi uma solução viável porque não inventou um motor novo, ele usou o mesmo motor da gasolina, destacando como a compatibilidade tecnológica foi fundamental para o sucesso da alternativa energética nacional.
Mobilidade urbana e a necessidade de transformação
A questão se torna ainda mais complexa quando o foco se volta para as cidades, onde vive 87% da população brasileira. Neste ambiente urbano, o transporte individual motorizado responde por 70% das emissões. A disparidade é gritante: em São Paulo, carros emitem 127 gramas de CO2 por passageiro-quilômetro, enquanto ônibus emitem apenas 16 gramas e, de forma ainda mais sustentável, o metrô apenas 2 gramas.
Frente a este cenário, tanto Avelleda quanto Barcellos defendem a estratégia do “avoid, shift, improve” (evitar, transferir, melhorar). O conceito, segundo Barcellos, começa pelo mais fundamental: evitar significa fazer com que pessoas possam morar perto de centros urbanos através de habitação de interesse social em áreas consolidadas.
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As consequências da dependência do transporte individual vão além das emissões. Segundo Barcellos, uma cidade focada no transporte individual é uma cidade que emite muito e tende a ser espraiada. Para o pesquisador, isso cria um círculo vicioso onde pessoas de menor poder aquisitivo ficam cada vez mais distantes dos direitos básicos. Barcellos destaca que é interessante pensar na transição energética nos transportes também como uma transição justa.
No contexto urbano, a eletrificação ganha contornos mais factíveis. “A eletrificação é uma tecnologia consolidada, os nossos projetos apostam nisso para as cidades”, afirma Magdala Ribeiro, do WRI Brasil. Para deslocamentos de longa distância, ela aponta alternativas como o hidrogênio verde, que consegue ter maior autonomia para esses deslocamentos.
Contudo, os números revelam o tamanho do desafio. O Brasil conta atualmente com apenas 602 ônibus elétricos, um número que deveria crescer para cerca de 11.000 veículos até 2030, segundo estimativas do C40 Cities. A baixa adesão tem causas estruturais: os custos ainda elevados e a resistência dos operadores que já estabeleceram seus modelos de negócio, de acordo com Magdala.
Além da eletrificação, Barcellos destaca a importância de valorizar modalidades frequentemente negligenciadas. Segundo o pesquisador do IEMA, geralmente nas cidades um terço é transporte a pé, outro terço transporte coletivo e outro terço individual motorizado, defendendo que o transporte público pode ser o primeiro indutor da eletrificação.
A questão econômica dos ônibus elétricos ilustra bem os desafios da transição. Os operadores tradicionalmente operam os veículos por até oito anos antes de revendê-los para cidades menores. Segundo Magdala, com o ônibus elétrico, é preciso considerar o ciclo de vida de 15 anos. Há sinais positivos vindos da experiência internacional: no Chile, os primeiros ônibus elétricos completaram sete anos com resultados ótimos nas baterias, dados que podem mudar os cálculos de viabilidade econômica, segundo a pesquisadora do WRI Brasil.
O financiamento como obstáculo central
Apesar das soluções tecnológicas identificadas no estudo da Coalizão dos Transportes, persiste um gargalo fundamental. “O grande desafio da COP30 é destravar os recursos necessários para a transição”, aponta Avelleda, identificando o financiamento como o principal obstáculo para a transformação do setor.
Os números mostram a dimensão dos investimentos necessários. O Novo PAC prevê R$ 53 bilhões em investimentos em mobilidade urbana sustentável, enquanto o setor privado busca alternativas como títulos verdes e empréstimos sustentáveis. “Muitas cidades dependem de subsídio do setor público para as operações de transporte coletivo”, destaca Magdala, do WRI Brasil.
A realidade brasileira aponta para uma estratégia híbrida. Barcellos acredita que a solução no Brasil passará pelas duas categorias: eletricidade e biocombustíveis. Para o transporte de cargas, especificamente, ele destaca as vantagens do diesel verde, que é um combustível que não precisa de modificação no caminhão, característica que facilita a transição imediata.
Essa abordagem pragmática reconhece as limitações e oportunidades do contexto nacional, combinando a inovação tecnológica com a realidade econômica e social do país. A transformação do setor não pode ignorar seus impactos sociais. Como alerta Avelleda, os ônibus elétricos demandam menos mão de obra e é preciso requalificar os mecânicos, exemplificando como a descarbonização deve vir acompanhada de políticas de proteção aos trabalhadores afetados.
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Com a COP30 sendo realizada no Brasil, o país tem uma oportunidade histórica de se posicionar como líder global em descarbonização. Se implementadas todas as alavancas identificadas pelos especialistas no relatório da Coalizão dos Transportes, o Brasil pode alcançar uma redução de 290 milhões de toneladas de CO2 equivalente até 2050.
O otimismo dos especialistas se baseia em dados concretos. Para Avelleda, as metas são factíveis porque foram os operadores, representantes do setor privado, que disseram ser viável. O estudo da Coalizão reconhece que será impossível zerar completamente as emissões, mas uma redução significativa aliada a mecanismos de compensação pode tornar o Brasil neutro em carbono no transporte até 2050, transformando um dos maiores desafios climáticos do país em uma oportunidade de liderança global.