O crescimento sustentado, como já demonstravam os clássicos da economia do desenvolvimento e o modelo de Solow, não decorre apenas do acúmulo de capital físico ou humano, mas sobretudo do avanço tecnológico, da difusão do conhecimento e da eficiência institucional.
William Easterly, em seu livro clássico The Elusive Quest for Growth (2002), reforça que décadas de investimentos em países emergentes fracassaram justamente por negligenciarem o verdadeiro motor do crescimento: a produtividade total dos fatores, ou seja, o avanço tecnológico e a eficiência com que capital e trabalho são combinados — em grande medida dependentes da geração, difusão e incorporação de inovação.
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Essa constatação se aplica de forma exemplar à trajetória chinesa nas últimas quatro décadas, marcada não por atalhos ou milagres, mas por projetos nacionais consistentes, dinâmicos e multifacetados, que combinam planejamento estatal, abertura gradual ao mercado, urbanização acelerada, construção massiva de infraestrutura e inserção competitiva no comércio internacional, sempre com ênfase estratégica em educação, ciência e tecnologia como alavancas centrais do desenvolvimento. Mais do que planos quinquenais bem formulados, a diferença crucial da experiência chinesa reside na capacidade de implementá-los de forma efetiva e perene e avaliá-los continuamente.
A velocidade da ascensão chinesa impressiona. Em 1978, quando Deng Xiaoping lançou a política de “reforma e abertura”, a China tinha um PIB per capita em torno de US$ 200, inferior ao de muitos países africanos de baixa renda. Pouco mais de quatro décadas depois, esse valor multiplicou-se por cerca de 60 vezes. O país se tornou concorrente direta dos EUA na liderança econômica, científica e tecnológica.
A título de ilustração, no início do século 21, os EUA lideravam 60 das 64 tecnologias-chave contra apenas três em que a China se destacava. Em 2023, o quadro se inverteu, com a liderança chinesa em 57 dessas 64 áreas, incluindo as de cadeias produtivas altamente sofisticadas.
Esse avanço, no entanto, não decorre de improviso ou de modelos prescritivos e estáticos como o Consenso de Washington, bem difundido, por exemplo, na América Latina, mas sim de uma trajetória longa e disciplinada de fortalecimento institucional e de construção contínua de capacidades nos setores público e privado.
A grande virada chinesa teve início no fim dos anos 1970, com a chamada “Primavera da Ciência”, que recolocou o conhecimento no centro do projeto nacional após os anos devastadores da Revolução Cultural. Nesse período, as conferências nacionais reafirmaram o papel estratégico da ciência para a modernização socioeconômica. Em seguida, a China avançou por movimentos sucessivos de aperfeiçoamento do seu sistema de ciência, tecnologia e inovação:
Primeira onda de reformas (1985-1998): quando o sistema de C&T foi reestruturado para responder melhor às demandas econômicas: institutos de pesquisa passaram a disputar recursos em programas competitivos de P&D, zonas de desenvolvimento tecnológico foram criadas e milhares de cientistas passaram da pesquisa acadêmica para a aplicada, impulsionados por políticas de incentivo para se tornarem empreendedores;
Segunda onda (1998-2006): priorizou a construção de um sistema nacional de inovação, com reformas em institutos de pesquisa, expansão do ensino superior e criação de universidades de nível internacional, tendo o Knowledge Innovation Program da Academia Chinesa de Ciências como pilar;
Terceira onda (2006-2013): marcada pelo Plano de Médio e Longo Prazo em Ciência e Tecnologia, que consagrou a inovação endógena como meta estratégica até 2020, mobilizando grandes investimentos e 16 megaprojetos em áreas críticas;
Quarta onda (desde 2013): a estratégia de desenvolvimento passou a ser explicitamente orientada pela inovação, com estímulo ao empreendedorismo em larga escala, integração entre governo, indústria e academia e foco em novas fronteiras tecnológicas, em meio a um cenário de competição internacional acirrada.
Os resultados concretos da transição chinesa são inegáveis. O investimento em pesquisa e desenvolvimento cresceu de forma contínua, passando de apenas 0,6% do PIB em 1980 para quase 2,7% em 2024, enquanto a participação do setor industrial nesse esforço subiu de 35% em 1986 para 77% em 2024. No campo educacional, a taxa de matrícula no ensino superior saltou de 3,7% em 1990 para mais de 60% em 2024, formando uma ampla base de capital humano altamente qualificado.
Desde 2016, a China lidera em publicações científicas e registros de patentes, superando Estados Unidos e União Europeia. Atualmente, o número de empresas chinesas na lista Fortune Global 500 já se equipara ao dos Estados Unidos, evidenciando a força de suas multinacionais. Esse destaque também se reflete na inovação: segundo o Global Innovation Index de 2025, a China ultrapassou os EUA em número de clusters tecnológicos entre os 100 mais dinâmicos do mundo. Nesse cenário, empresas inovadoras como Huawei, Lenovo, Alibaba e a emergente DeepSeek simbolizam o novo protagonismo global do país.
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Essa trajetória mostra a passagem de um país que antes imitava tecnologias estrangeiras e era conhecido como “a fábrica do mundo” para um centro de inovação que dita tendências. Mais do que números, o que impressiona é a complexidade e a continuidade desse processo, que nunca foi rígido, mas sim marcado pela adaptação gradual e pela capacidade de aprender com erros e acertos.
Não se trata de copiar um modelo normativo, mas de construir um caminho próprio baseado em políticas públicas amplamente deliberadas, visão estratégica e forte integração entre governo, empresas e universidades.
Não obstante, hoje, é notório que a China enfrenta novos desafios: crescimento menos acelerado como o novo normal, maior competição internacional e tensões geopolíticas com efeitos prejudiciais ao progresso de setores estratégicos ainda em maturação, como semicondutores e aviação.
Mesmo assim, o horizonte é claro. O próximo 15º Plano Quinquenal tende a reforçar a marca “Innovated in China”, abandonando a imagem de mero polo de manufatura e consolidando a ambição (cada vez mais realista) de ser a maior potência tecnológica do mundo. No fim das contas, a resposta à pergunta que intriga acadêmicos, políticos e empresários — “o que explica essa transformação chinesa? — é simples e contundente, em analogia ao jargão: “é tecnologia, estúpido”!